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RESENHAS

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Resenha política do livro "A Ossatura"

Jeová Santana*

Por Miguel do Rosário

Quantas vezes a gente lê uma resenha enaltecendo um autor, fica curioso, vai na livraria, folheia e se decepciona profundamente? O enredo é confuso, o texto é pretensioso, o livro todo parece um equívoco. No entanto, não é, segundo a mídia (incluindo a mídia alternativa), justamente esse o grande escritor do momento?

A dura e triste verdade é que resenhas de jornais e revistas não passam, na maior parte das vezes, de propaganda paga por grandes editoras. E quando não são pagas, os editores simplesmente usam o espaço para destruir a reputação e a carreira de algum escritor iniciante, de preferência algum desafeto, por motivos mesquinhos de politicagem literária. Há também aquelas resenhas coletivas, em que articulistas apenas listam nomes mais ou menos conhecidos, como se o simples fato de repeti-los fosse um atestado em si da qualidade estética deles. "Como posso eu falar aqui de fulano, sicrano, beltrano, zegrano, yebrano, todos tão diferentes, maravilhosos, geniais? Que dizer sobre fulancros tão originais?", babujam resenhistas de dois vinténs.

Há também críticas devastadoras sobre determinados autores, nas quais você acredita piamente de início, chega a odiar os caras, até o dia em que, movido por uma curiosidade insaciável, resolve consultar a obra amaldiçoada numa livraria. Não compra, é claro, porque só compramos o que todo mundo também tá comprando. Os diferentes, os renegados, são lidos às escondidas, na própria livraria, enquanto os Dan Brow, os Jô Soares, Chico Buarque, vendem mais que calcinha em dia de liquidação. E aí você descobre - mas não compra, naturalmente - que o cara é bom, muito bom, bom pra caralho, pelo menos na sua humilde opinião que você não vai ter coragem de compartilhar com ninguém.

Também há os sites alternativos de literatura. Uns, para sobreviver, fizeram parcerias com lojas on-line e fazem resenhas ultra-positivas ("não há dúvida, a Ivonilda é a melhor escritora da atualidade e quem disser o contrário é louco, viado ou corrupto") para ganharem seus percentuais nas vendas. Nada mais justo, já que se trata de sobreviver. A luta pelo pão é sagrada. O problema é que, para legitimarem suas ladainhas mercantis pegam às vezes, na rua, algum escritor indigente (sem editora, sem amigos, sem dinheiro) e o executam cinicamente na praça pública virtual de suas mini-centrais de venda travestidas de sites de literatura. Outros, sem ganhar nada, optam pela crítica cri-cri, de rés do chão, à cata de errinhos de digitação e deslizes gramaticais.

Mudando o assunto. Não adianta. Por mais que especialistas, criadores e empresários quebrem a cabeça para descobrirem como transformar a literatura num mercado razoavelmente rentável, nunca vão achar a saída. Arte é idealismo, sonho, paixão. Carreiristas, oportunistas, sortudos, podem brincar de literatura, e ganhar dinheiro, em meio ao show business que o mercado está sempre inventando para produzir um simulacro de literatura no mundo. Flips, bienais, prêmios, concursos, resenhas na Folha, na Veja, caixas de comentários estourando de bajuladores e amiguinhos eletrônicos, nada disso é digno da transcendência libertária e do potencial revolucionário da literatura. Transcendência que, no livro de Jeová Santana, "A Ossatura", é construída com a simplicidade dos camponeses que fazem revoluções após a colheita e dos operários que discutem a greve aos domingos; dá mesmo "vontade de saltar os degraus de dois em dois, tal a alegria".

Dito tudo isto, vos apresento a obra que tocou-me coração e nervos. Olha que ela tinha concorrentes pesados na minha mesa: Homero, Cortázar, Cervantes, Fitzgerald, Mark Twain. Numa noite dessas, fiz café e pensei que era o momento de ler um contemporâneo brasileiro, alguém que transformasse o nosso tempo e nossa terra em arte. Sei que muitos não acreditam nisso: estão com suas mentes destruídas pelo egoísmo burguês, pela arrogância aristocrática, pelo sectarismo pseudo-marxista; mas ainda existe, sim, gente que não lê Diogo Mainardi e ama, com amor sagrado e sangrento, com inocência idílica e ebriedade filosófica, ou mesmo sociológica, essas terras desencantadas, esse Brasilzão simplório e malandro, atravessado por esse velho rio, esse Chico antigo, que desemboca, suavemente, no mar do nosso pequeno e bravo Sergipe onde morreu Virgulino.

"A Ossatura", segundo livro do escritor sergipano Jeová Santana, traz vinte e cinco contos que versam sobre o drama do ser humano diante da opressão, da crueldade, do medo. Os personagens criados de Santana são pessoas terrivelmente vivas, expostas ao sol terrível da morte e que, de alguma desesperada maneira, encontram a liberdade.

O conto que dá título ao livro é a história de uma mulher pertencente a uma família conservadora, das classes proprietárias do nordeste rural. Seu pai, um camponês forte, rico e brutal, não hesita em espancar-lhe à menor suspeita de insubordinação. Suas irmãs mais velhas tiveram casamentos arranjados, e ela rebela-se em pensamento contra a autoridade do pai. No seminário, devora livros, como uma Bovary do sertão. Diz ela: "naqueles longes eu já ansiava ser testemunha, meu pai, da sua queda". Mais tarde, sem poder resistir às pressões familiares, casa-se com um homem que ela não ama, mas que tem posses suficientes para comprar a aceitação do pai. O final trágico e surpreendente do conto revela, porém, que seus anseios de amor e liberdade, apesar de reprimidos, continuaram vivos, desesperadamente vivos.

Quase todos os contos são narrados em primeira pessoa, sendo o narrador o protagonista da história, usando-se a técnica do fluxo de consciência. Trata-se de um recurso estílistico dos mais modernos, manejado por Santana com rara maestria; e que consegue associar, a cada personagem, a linguagem e a psicologia próprias da história.

As histórias são surpreendentes, engraçadas, misteriosas. Santana não usa a literatura para exibir virtuosismo, como tantos, mas para contar histórias dolorosa e delirantemente verdadeiras. Há o psicopata e sua patética história de violência sexual por parte de seu padrasto bêbado; o jornalista dilacerado pelo desejo de libertar-se da rotina mesquinha da redação e escrever o que lhe vier na telha; o idoso funcionário da alfândega olhando, na parede, a fotografia de seus colegas de ofício, que foram sendo, um a um, raptados pelos lacaios da velha senhora de capa preta e foice na mão.

Enfim, um livro que reúne a rara equação de ser profundo sem ser chato, divertido sem ser superficial, denso sem ser pesado. Um livro que nos rejuvenesce: sentimo-nos estudantes novamente, com aquele friozinho na barriga que vinha toda vez que fugíamos do aconchego do lar e nos soltávamos, rebeldemente, pelas caatingas da vida.

Trechos do conto "O Resolvedor".

"Agora ele aprendeu. Depois da vergonha não deu mais as caras. Também não estou aqui para fazer o julgamento de sua pessoa. No fundo ele é um puro. Só não se deu conta dos seus limites e não aprendeu que lidar com gente é a pior coisa. É uma tarefa que nem Deus Nosso Senhor quis resolver. O senhor não vê o desfrute que fizeram com Seu Filho, daqui escorraçado a ponta de lança e espinhos?"

"Mas a convivência com o próximo sempre atrai tempestades. Este problema, o senhor sabe, é das antigas. Me parece que é São Marcos que recomenda pra gente suportar uns aos outros. E aí se forja a loucura que faz do mundo este lugar atrapalhado. Cada um de nós acha perfeitos a cara, os gostos, os gestos que nos registram, mas não tem um tiquinho de paciência para com o semelhante."

Sobre o Autor

Jeová Santana: O poeta Jeová Santana nasceu em Maruim (SE), em 17 de outubro de 1961. Dizer que ele é graduado em Letras (UFS) e Mestre em Teoria da Literatura (Unicamp) é muito pouco para quem já publicou livros do quilate de A ossatura, Dentro da casca (contos, 1993); e tem uma série de poemas publicados em tantos outros lugares. Recentemente teve a alegria de ver alguns deles publicados na revistas Cult (SP) e Poesia Sempre (RJ), só para citar... Trabalha na rede estadual de ensino como professor de língua portuguesa, literatura e redação.

 

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