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RESENHAS

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Um Filho Do Seu Tempo

Karl Larenz*

A Metodologia da Ciência do Direito, de Karl Larenz, constitui um manual de referência no ensino universitário do Direito Civil e da sua metodologia. Desde a sua primeira edição, em 1960, até a sexta edição, de 1991 – a última publicada em vida do autor – a evolução deste manual representa uma continuidade de um pensamento metodológico compreensivo e orientado a valores.

A mudança mais significativa está documentada na terceira edição, de 1975. Aí, Larenz afasta-se do neo-hegelianismo e apoia-se nas doutrinas da Hermenêutica filosófica, reformulando as bases filosóficas da sua crítica a um pensamento jurídico formalista abstracto, crítica esta que tinha constituído o mote dos seus trabalhos de filosofia do Direito e de metodologia da ciência do Direito desde os tempos de juventude.

Discípulo, em Göttingen, de Julius Binder, Larenz formou-se intelectualmente nos quadros do neo-hegelianismo jurídico e no estertor da República de Weimar. O adversário intelectual de então era o neo-kantismo jurídico, quer na variante representada pela escola de Marburgo (sobretudo Rudolf Stammler), quer na orientação da escola sudocidental alemã (sobretudo Gustav Radbruch) – e, muito principalmente, a teoria pura do Direito de Hans Kelsen. A oposição ao neo-kantismo jurídico e ao formalismo jurídico em geral representava no plano ideológico a oposição ao Estado de Direito liberal-formal, inicialmente de um ponto de vista nacional-conservador e, subseqüentemente, com matizes claramente autoritárias. Exemplo desta postura intelectual e ideológica é o percurso intelectual e político do caput scholae do neo-hegelianismo jurídico, Julius Binder.

Karl Larenz escreve a sua dissertação de doutoramento sobre a doutrina da imputação de Hegel e o conceito de imputação objetiva no espírito do neo-hegelianismo dos anos 20, cujo arauto tinha sido Richard Kroner e no plano da filosofia do Direito Erich Kaufmann, Walther Schönfeld e Julius Binder. Do ponto de vista filosófico, este retorno a Hegel representava uma revivescência do pensamento especulativo contra o paradigma de cientificidade das ciências empíricas; do ponto de vista jusmetodológico, uma crítica a Jurisprudência normativista a ao pensamento formal-abstracto no processo de formação de conceitos na ciência do Direito e na obtenção do Direito no caso.

Pensamento jurídico concreto não equivale, todavia – bem pelo contrário, a uma aproximação às ciências empíricas: Larenz opõe-se, em nome do conceito dialético de realidade do idealismo objectivo, à sociologia positivista do Direito de Ehrlich e à própria orientação sociologizante da jurisprudência dos interesses. O ponto de arrimo filosófico é aqui a idéia dialéctica de realidade como desenvolução do ser em formas de compreensão ascendente e a crítica de Hegel à filosofia abstracta do intelecto discursivo, em nome de uma filosofia especulativa do Absoluto, dirigida ao estabelecimento mediante a razão da unidade dos termos usualmente contrapostos pelo pensar de oposições do intelecto discursivo. É este também o ponto de arrimo filosófico contra os dualismos neo-kantianos de forma e matéria e de realidade e valor, que fundamentavam filosoficamente o normativismo puro da filosofia do Direito de inspiração neo-kantina. A idéia dialéctica de realidade não equivale a um mera facticidade, mas é portadora de um sentido normativo. Esta rejeição dialéctica da disjunção que constituía um pressuposto de base ser e ser - disjunção que constituía um pressuposto de base do neo-kantismo –abre o caminho a uma concepção institucionalista do Direito, que se refere a dados pré-positivos a determinação última de sentido do ordenamento jurídico. Naturalmente que esta concepção dialéctica de Jurisprudência se opõe a uma concepção normativista de Jurisprudência e contesta as teses legalistas sobre as fontes do Direito e as formas de desenvolução de sentido do ordenamento jurídico, promovendo tendências de materialização ou substancialização do direito formal e da legalidade formal do estado legislador parlamentar. Esta materialização ou substancialização do Direito formal promove a neo-hegelianismo jurídico no período nacional-socialista sobretudo com base na idéia de que o Direito e o Estado são desenvoluções da substancia ética de um povo e mediante o intento de uma eticização do Direito formal.

Do mesmo modo, a orientação organicista do neo-hegelianismo jurídico toma partido contra o espírito individualista do Direito natural racionalista, recuperando o ponto de vista da substancialidade ética da doutrina hegeliana da Sittlichkeit e da análise do espírito objectivo. Positivismo legalista, individualismo e Direito natural abstracto são os inimigos jurados do neo-hegelianismo jurídico. O mesmo se diga do relativismo axiológico, que Gustav Radbruch e Hans Helsen explicitavam como pressuposto metaético da idéia de Democracia. A crítica hegeliana ao formalismo abstracto da Moralität e do Direito natural racionalista constitui a base filosófica das concepções organicistas do neo-hegelianismo jurídico, que no período nacional-socialista reinterpreta Hegel a partir de um pano de fundo romântico, quando não mítico.

Na sua oposição fundamental ao que considerada ser o formalismo abstracto da jurisprudência tradicional e da sua orientação normativista, o neo-hegelianismo jurídico acaba por ser no período nacional-socialista a fundamentação jusfilosófica mais sistematizada de uma renovação alemã do Direito e de uma nova ciência do Direito. A nova ciência do direito infunde novos conteúdos nos conceitos dogmáticos tradicionais, mediante a eticização do Direito formal: a filosofia do Direito é considerada como momento integrante da formação conceptual na Jurisprudência e a abordagem dogmática da Jurisprudência substituída por uma filosofia jurídica aplicada como doutrina dos conceitos fundamentais do Direito alemão. Nesta base de rejeição do formalismo jurídico e do pensamento abstractor, Larenz propugnou uma nova modalidade de formação de conceitos no pensamento jurídico, com base em tipos, séries de tipos e conceitos geral-concretos. a fundamentação filosófica desta nova modalidade de formação de conceitos é ainda a filosofia de Hegel e a sua concepção do conceitos como o pura e simplesmente concreto, concepção que Hegel contrapunha à da filosofia da reflexão da subjectividade – de Kant, Jacobi e Fichte – é a sua lógica do intelecto discursivo, que entendia o concreto como uma construção do pensamento e não, em termos dialécticos, como a própria realidade apreendida.

Na terceira edição da Metodologia da Ciência do Direito. De 1975,KarlLarenz abandona esta lógica do conceito geral de Hegel como elemento cuja desenvolução de sentido pudesse tornar visível a estrutura interna de sentido do Direito vigente e rejeita a pretensão do sistema hegeliano a um caracter absoluto. Não obstante, mantém ainda um excurso sobre a distinção em Hegel entre conceito abstracto e conceito concreto. Na segunda edição da Metodologia da Ciência do Direito, de 1969, Larenz assume ainda uma forma de pensamento institucional, em que ao conceito concreto geral de pessoa e à sua desenvolução de sentido é atribuída a missão de tornar visível a estrutura interna de sentido do Direito vigente, nesta densificação e concentração conceptuais. Do mesmo modo, na primeira edição da sua Allgemeiner Teil des deutschen bügerlichen Rechts expõe as principais instituições do Direito privativo – a saber: os conceitos de propriedade, de responsabilidade, de contrato e das diversas formas de pessoas colectivas de Direito privado – como momentos de sentido deste conceito concreto-geral de pessoa. A pretensão deste conceito concreto-geral de pessoa era pois a exposição dos princípios jurídicos imanentes de uma ordem jurídica ou de um sector determinado, tornando visível a sua unidade de sentido intrínseca.

Se Karl Larenz opera no pós-guerra uma ruptura com a sua fundamentação neo-hegeliana de uma renovação alemã do Direito de cariz totalitário, em direcção a um personalismo ético de pendor institucionalista, e se acaba mesmo por abandonar uma fundamentação neo-hegeliana de um pensamento jusmetodológico compreensivo e orientado a valores, subsiste nele uma tendência de oposição ao método analítico-abstracto de construção de desenvolvimento de conceitos jurídicos, a favor daquilo que Karl Engisch caracterizava como uma tendência de concretização do Direito no sentido de um pensamento holístico. A este propósito é elucidativa a doutrina do tipo de Larenz, que permanece sem alterações significativas desde o seu neo-hegelianismo inicial até esta edição derradeira da Metodologia da Ciência do Direito, bem como, mais em geral, a sua transitação de uma fundamentação neo-hegeliana para uma fundamentação hermenêutica de um pensamento jusmetodológico compreensivo e orientado a valores, em que o todo de sentido da ordem jurídica passa a ser explicitado não já como desenvolução do sentido do conceito concreto-geral de pessoa, mas como sistema aberto de princípios jurídicos gerais, que representam a conexão material de sentido das leis. Em Larenz permanece constante uma linha de fundo de rejeição do pensamento categorial e abstractor como base de formação conceptual nas ciências do espírito em geral e na Jurisprudência em particular. Segundo Larenz, a unidade de sentido intrínseca do Direito é axiológica e não lógica e essa unidade de sentido não é reflectida por aquilo que Heck denominava de sistema externo, construído como sistema de conceitos básicos puramente formais, mas torna-se visível enquanto sistema axiológico-teleológico de princípios jurídicos.

Tal qual nos anos vinte, em que o seu arrimo ao neo-hegelianismo tinha ilustrações concretas no plano de metodologia jurídica – diferentemente de Julius Binder ou Walther Schönfeld, cujo pendor era quase exclusivamente filosófico-especulativo e jusfilosófico-, o interesse subsequente de Larenz pelas doutrinas da hermenêutica filosófica ocorre prevalecentemente em virtude de preocupações jusmetodológicas e de fundamentação de um pensamento orientado a valores no âmbito da ciência do Direito. Não é aqui o lugar para proceder ao recenseamento das diversas linhas de recepção das doutrinas da hermenêutica filosófica por parte da Jurisprudência, nem tão pouco para ajuizar da maior ou menor fidelidade da Larenz em relação às teses filosóficas de Hans-Georg Gadamer. O modo como permanecem nele diferentes veios de inspiração hegeliana e a junção ulterior das doutrinas da hermenêutica filosófica tornam legítima a qualificação de Krawietz da orientação de base de Larenz como um idelaismo dialéctico-hermenêutico.

A fundamentação de um pensamento metodológico compreensivo e orientado a valores e que busca uma via para a formação dos conceitos e do sistema na jurisprudência distinta daquela que lhe era assinalada por uma metodologia jurídica que procedia em termos conceptuais-abstractos – faz-se agora com arrimo à especificidade do método de elaboração conceptual nas ciências do espírito, especificidade essa que ao nível da doutrina do método tinha sido conceptualizada sobretudo por Dilthey e a que o próprio Hegel tinha aberto caminho com a sua doutrina do espírito objectivo. Essa especificidade do método de elaboração conceptual traduz-se no tipo e na série de tipos, como elementos conceptuais abertos à vida, nos conceitos determinados pela função e nos princípios, como condensações das valorações fundamentais em que se escorra a ordem jurídica e que no seu jogo concertado permitem apreender a unidade de sentido intrínseca do Direito, como sistema aberto a fragmentário.

A rejeição do pensamento categorial e lógico-classificatório como método de elaboração conceptual na ciência do Direito e a defesa de um pensamento metodológico compreensivo e orientado a valores estrutura não apenas o modo como Karl Larenz desenvolve a doutrina do método na ciência do Direito na Parte Sistemática desta Metodologia da Ciência do Direito, mas inclusivamente a seqüência da exposição na Parte Histórico-Crítica. Aí, a noção de positivismo jurídico é tão latamente entendida que permite fazer ombrear Windscheid com Bergbohm ou Ehrlich com Kelsen, sob a perspectiva de uma crescente formalização do método de elaboração de conceitos na ciência do Direito; de modo análogo, também as tendências de materialização ou substancialização do Direito formal, sejam elas de matriz neo-kantiana, neo-hegeliana ou fenômenológica, são agrupados sob a denominação comum de um abandono do positivismo na filosofia do Direito.

Nesta parte Histórico-Crítica falta, porventura, uma consideração mais pormenorizada das doutrinas do último jusnaturalismo e, em particular, da influência da filosofia kantiana na fundamentação dos conceitos e do método da ciência do Direito Civil. Karl Larenz inicia a parte Histórico-Crítica com Savigny e a Escola Histórica do Direito, fixando aí a consolidação de uma concepção de ciência do Direito de natureza dogmático-exegética, em ruptura com as concepções do último jusnaturalismo de uma complementariedade entre a ciência do Direito positivo e doutrina filosófica do Direito, que legitimava o intérprete para uma intervenção correctiva e complementadora do Direito positivo, de acordo com a máxima do aperfeiçoamento formal das leis. Mas se Larenz tem razão ao referir à Escola Histórica do Direito a fundamentação metódica de uma concepção exegético-dogmática de jusrisprudência, o seu pendor para um pensamento jurídico de cariz institucionalista e a sua simpatia pelos motivos anti-iluministas e, em particular, anti-racionalistas do romantismo alemão fazem com que sejam depreciadas as influências do último jusnaturalismo na fundamentação dos conceitos e do método da ciência do Direito civil. Porventura, uma maior concentração na obra de Gustav Hugo, como ponto de transição entre o jusracionalismo de matriz kantiana e o historicismo jurídico, poderia atenuar esta perspectiva unilateral a explicitar a relação de algumas categorias básicas do Direito com a prática racionalista dos séculos XVII XVIII e com a sua idéia de base de uma normatividade autônoma racional.

O estilo conciso que está redigida esta Metodologia da Ciência do Direito, a mestria com que Larenz penetra e inter-relaciona movimentos filosóficos díspares – sobretudo, a sua familiaridade com a filosofia do idealismo alemão-, o nível da fundamentação filosófica da doutrina do método da ciência do Direito, o conhecimento profundo da evolução dogmática e jurisprudencial fazem deste livro um instrumento de trabalho imprescindível para estudantes e práticos. A aguda consciência metodológica que transparece em cada página deste livro- mesmo com as reservas apontadas e, eventualmente, enfatizadas- é exemplar, no sentido de um ensino do Direito que evite produzir, como se dizia nos inícios do século XIX juristas áridos, debruçados exclusivamente sobre a exegese dos textos legislativos, sem em contrapartida incentivar apenas as elocubrações dos, como então também se dizia, juristas filosofantes.

Nesta obra condensam-se quase duzentos anos de evolução no âmbito da metodologia do Direito, mormente do Direito civil. O seu autor foi ao longo de mais de meio século em protagonista influente nessa discussão metodológica. A continuidade de uma atitude de rejeição de um pensamento jurídico formalista abstracto ao longo das mais distintas conjunturas ideológicas e políticas – do estertor de Weimar à refundação conservadora da Democracia na Alemanha, passando pelo período nacional-socialista – e a sua defesa de um pensamento metodológico compreensivo e orientado a valores permitiram a Larenz uma transitação do compromisso totalitário a um personalismo ético de pendor institucionalista sem, no fundo, ter de operar uma ruptura radical com o instrumentário conceptual jusmetodológico. Essa paradoxal simbiose de continuidade e de mudança reflecte de maneira eloqüente o modo como o pensamento conservador alemão deste século se confrontou com as distintas conjunturas políticas e ideológicas do país. A biografia intelectual de Karl Larenz, que confessou um dia que a sua maior ambição intelectual teria sido poder ter escrito um Comentário à filosofia do Direito de Hegel, constitui, irônica e tragicamente, uma comprovação do acerto das considerações de Hegel sobre a postura da filosofia face à realidade – que ele desenvolve no prefácio dos Princípios da Filosofia do Direito – e, em particular, da sua consideração de que no que respeita ao indivíduo, cada um é, aliás um filho do seu tempo.

(José Lamego)

Sobre o Autor

Karl Larenz: Karl Larenz nasceu em 1903. Doutorou-se em Direito na Universidade de Göttingen em 1926, tendo obtido aí a habilitação em Direito Civil e Filosofia do Direito em 1929. Ensinou nas Universidades de Kiel e de Munique, onde se jubilou. Faleceu em Munique, em 24 de Janeiro de 1993. Autor de inúmeras publicações, as suas obras de ensino universitário mais divulgada são, a par desta Metodologia da Ciência do Direito, a Parte Geral do Direito Civil Alemão e o Tratado de Direito das Obrigações.

 

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