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A vida por aqui, na praça Roosevelt

por Ivam Cabral *
publicado em 12/07/2004.

DeaSÃO PAULO - Diariamente eu me sento de frente pra praça. Em meu escritório, no sexto andar, tenho o meu micro voltado para um janelão, protegido por duas cortinas. Por causa do sol, normalmente deixo apenas uma delas aberta. Hoje, abri as duas.

Se por um lado, a tela do meu computador ficou sem a luminosidade ideal, por outro, tenho a igreja da Consolação à minha frente. E vejo a cúpula das árvores, de um verde, que de tão belo, quase me irrita. Como se quisesse ratificar em mim toda a minha incompetência de continuar prosseguindo, crescendo nessa triste e árida terra que, dizem, nem sempre foi assim.

Mas me irrito também porque hoje, se não bastasse, eu amanheci triste. Mas tenho que confessar que é uma tristeza diferente. Porque estou iluminado, sobretudo. Exatamente como a minha praça, a Roosevelt, hoje.

Tanta melancolia – se assim posso definir este meu estado de espírito –, afinal, tem uma explicação. Atende pelo nome de Dea Loher. É da Baviera, dramaturga impressionantemente boa, e uma grande contadora de histórias. Escreveu – e eu li ontem – um texto teatral lindo chamado “A vida na praça Roosevelt” (“Das Leben auf der Praça Roosevelt”).

Carregado de lirismo e personagens extraordinários, a obra me pega em vários níveis. Primeiro porque a Dea, utilizando-se da nossa intimidade, resolveu revelar ao mundo segredos muito pessoais, antes mantidos a sete chaves. Segundo porque colocou um espelho bem na minha janela. Assim, eu não consigo ver mais nada além da minha própria condição. E se o texto de Dea é triste, assim é a minha vida. Terceiro, porque humanizou demais a praça Roosevelt. E a gente, aqui, nesse mundo de concreto, está perdendo nossa alma dia após dia. E mesmo que eu clame pelas preces, que bem poderiam vir da igreja a minha frente, sinto, com a dor encravada na minha alma, que o mundo, há muito, desperdiçou sua condição de regenerador de humanos. Porque, por aqui, as coisas andam tristes demais. Mesmo quando o sol brilha, como hoje.

Eu conheço a praça Roosevelt, em sua rotina, há parcos quatro anos. Desde que começamos a pensar em realizar um trabalho teatral por aqui. Este início foi mais complicado. Éramos sós e lutávamos mais pela humanização desses concretos.


Hoje os travestis, as prostitutas e até os cachorros da rua têm nome. E nos contam suas histórias. Reais, às vezes...

Como as que ouvi hoje, quando almocei com a Marcinha, um travesti lindo, com a alma mais feminina que eu conheço. E mesmo fazendo de conta que acreditava nas histórias de felicidade que ela me contava – o projeto de morar por uns tempos na Itália, por exemplo – percebi que ela não levou a sério a minha convicção. Então, mentimos os dois. Cada um com seu motivo, cada um a sua maneira.

Mas a vida que a Dea imaginou – e até viveu, sim – na praça, é a mesma que vivo hoje. Sem perspectivas, porque parece que essa brilhante e originalíssima condição do homem – liberdade de expressão, de ir e vir, etc – já não é suficiente e não se enquadra mais por aqui.

Nossos mendigos, aqui, na Roosevelt, a toda hora refazem o caminho da esperança que parece que ficou esmagada lá, nas suas origens: sul, norte, nordeste, principalmente. Em seus olhos, esbugalhados, vejo suas dores. Como os meus que se dirigem à mesma praça. E ao altar da igreja da Consolação, aonde tenho ido, cada vez mais freqüentemente.

Na praça de Dea, convivem grandes amigos meus, e suas histórias. Sempre tristes. Da Phedra D. Córdoba, por exemplo, minha amada transexual cubana, exilada como Medea, refugiada como tantas.

Protagonista exuberante da Roosevelt, estreada em Hamburgo recentemente pelo Thalia Theater, ensinando sempre a dignidade e somente a dignidade – ainda que em cima de seus tacões surrados. Na praça de Dea, Phedra vira Aurora.

A cena em que Aurora descreve como conheceu Concha – no cume do texto, outra protagonista da dor –, no cemitério São Luiz, emociona de uma maneira intrigante. Concha, que está morrendo de câncer, e que cheira a gatos, precisa guardar os momentos, todos, a todo instante. Uma foto a cada dia.

Mas é o senhor Mirador, uma espécie de guardião desta Roosevelt sombria, que toca ainda mais a minha alma. E aí, Dea foi cruel. Utilizou-se de minha memória mais que emotiva pra colocar na boca do senhor Mirador a história dos meus pais, que acabaram por se eternizar na obra da minha amiga alemã contadora de histórias secretas.

Agora terei que me desculpar com tantos amigos... Porque a Dea acabou revelando, nesta “A Vida na Praça Roosevelt”, segredos confidenciados a sete chaves com a Érika Riedel; com Zélia, minha diarista; com a Bibi, outra amiga travesti. (Meu Deus, eu tenho muitos travestis à minha volta!)

Estou emocionado. E melancólico mesmo. Mas ainda que me custem mais algumas lágrimas. Ainda que este verde que de tão lindo chega a ser medonho. Ainda que eu não entenda direito porque o dia de hoje amanheceu assim, com um sol tão destemido, no meio de dias tão sombrios. Ainda que nunca encontre nada, além dessa tristeza que norteia minha alma. Ainda assim continuarei a amar esta praça conhecedora de tantos e tantos segredos...

Agora já me sento diferente à frente desta janela que dá para praça. E vou fechar, novamente, uma das partes da cortina. Não quero mais ver a igreja da Consolação. Pelo menos hoje, não. Vou, sim, ratificar a incompetência.

E continuarei prosseguindo, crescendo nessa triste e árida terra que, com certeza absoluta, nem sempre foi assim. Porque estou iluminado, sobretudo, vou continuar vivendo as histórias desses meus amigos tão estranhos como eu. Tão inusitados como eu, a Dea e própria praça Roosevelt.


Sobre o Autor

Ivam Cabral: Ivam Cabral é ator e um dos fundadore da companhia de teatro Os Satyros e, atualmente protagoniza "Kaspar ou A Triste História do Pequeno Rei do Infinito Arrancado de Sua Casca de Noz".

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