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SUBSÍDIOS FILOSÓFICO-CULTURAIS PARA A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA CRÍTICA - PARTE I

por Henrique Chagas *
publicado em 20/08/2004.

Clique aqui para continuar na PARTE II


PREFÁCIO

Por mais paradoxal que nos pareça, o homem pode sentir-se desinformado por encontrar-se diante de tantos dados informativos - revistas, jornais, rádio, televisão, livros - que não consegue organizá-los e, portanto, torna-se confuso em meio a tamanha complexidade. É a situação do cidadão que só tem notas graúdas e não consegue comprar pequenas coisas ou simplesmente pagar o ônibus. E a gente não possui instrumentais suficientes para desvendar os mecanismos inerentes a essa confusão. Não dispomos de meios de compreensão ou quando encontramos instrumentais, estes são tão sofisticados que não sabemos usá-los.

Diante desta realidade, o desafio, que se nos apresenta, consiste em sermos lúcidos diante das estruturas vigentes.

O presente trabalho é uma proposta para uma análise filosófica e cultural, que nos ajudará a adquirir uma consciência crítica diante dos acontecimentos e tornar mais lúcida a nossa visão de mundo.

A princípio, sabemos que o homem é um animal oeconomicum, politicum et symbolicum ao mesmo tempo. Estas três dimensões constituem de suas próprias práticas:

a) econômica ==>> produção e distribuição de bens;
b) política ==>> organização social, poder, Estado; e
c) simbólica ==>> produção de idéias : Filosofia, ciência, arte, religião , valores e etc.


A partir dessas práticas, o homem estabelece relações: econômicas, políticas e simbólicas. Esse conjunto de práticas e relações denominamos práxis, que envolve sempre um elemento de consciência, de inteligência, de conhecimento. Faz-se necessário explicitar a teoria da práxis. A teoria que a ilumina, que a justifica, a explica, a legitima.

Ter consciência critica é saber explicitar a teoria de nossas práticas. "Consciência crítica não é uma estrutura abstrata, nem uma entidade teórica. Ela é o momento teórico de uma prática critica. É a inteligência da prática" (Libânio) (01), que necessita de elementos teóricos.

No próprio ato de conhecer os fatos, o sujeito não os capta tal como os são. Para o sujeito não existe fatos brutos, pois ao conhecer dá-se uma visão interpretativa aos fatos. Podemos dizer que ter consciência critica é também saber perceber os elementos subjacentes no conhecimento.

Este trabalho tem como referencial (de maneira simples e resumida) os instrumentais de análise elaborados pela equipe do pesquisador João Batista Libânio (pesquisador do IBRADES/RJ). O instrumental apresentado neste trabalho foi sistematizado da seguinte forma: organização dos elementos filosófico-culturais em três momentos (três esquemas mentais). Mostrando as tendências predominantes e sua relação com o contexto cultural global. Os três momentos querem esquematizar, de modo estrutural e didático, a mentalidade fixista, objetivista, estática (primeiro momento - momento do objeto), a mentalidade subjetivista, evolucionária, dinâmica (segundo momento - momento do sujeito) e a mentalidade social, dialética (terceiro momento - momento sócio-dialético).

Utilizei também outros dados que julguei por bem colocá-los para exemplificar ou esclarecer o instrumental (02).

INSTRUMENTAL DE ANÁLISE
ESQUEMA MENTAL


INTRODUÇÃO

1- CONCEITUAÇÃO.

Na medida em que a cultura se vai socializando, as concepções do mundo, as posições e as opiniões sobre a realidade se mesclam num amálgama complexo. Ao longo da história vão se evoluindo e se transformando.

Muita tinta correu sobre tal temática. De modo nenhum temos a pretensão de elaborar uma análise crítico-histórica da evolução das correntes de pensamento. Mas podemos fornecer subsídios que nos ajudam a organizar, dentro de grandes quadros, a pluralidade dos elementos culturais prejacentes à nossa maneira de ver o mundo. São elementos para podermos ver melhor como é a realidade.

Faz-se necessário termos em mente alguns conceitos, embora seus limites não sejam facilmente definíveis. Mentalidade, antes uma categoria ligada à Psicologia social, exprime um conjunto de concepções e opiniões pouco reflexas, que se originam da linha de vida, que se assume comumente dentro de espaço de tempo limitado da experiência. Une valores e atitudes, de modo imediato, a uma representação da realidade. Categoria também usada na Sociologia do Conhecimento, ao contrapor-se à de Ideologia... Enquanto mentalidade pertence ao mundo mais espontâneo, a ideologia se coloca do lado da sistematização coerente, racional e interessada. A ideologia é a expressão de interesses racionalizados de um grupo/classe, enquanto que a mentalidade tem uma finalidade integradora num grupo, buscando coesão.

Agora, esquema mental, que usaremos neste trabalho: o vocábulo "esquema", sugere-nos a significação de figura ou forma, que representam os elementos essenciais de um objeto. Com esse termo, entretanto, queremos simplesmente exprimir a unidade mais ou menos coerente e organizada, em diversos níveis de explicitação, de nosso universo de compreensão, valoração e atividade. Com o termo "mental" queremos indicar a importância da inteligência na organização e sobretudo na explicitação de tal esquema. Funciona como pano de fundo, horizonte de compreensão, contra o qual os dados diários são apreendidos, valorados, assumindo a função de "lugar cultural", a partir do qual ou contra o qual entendemos, valoramos, assumimos a realidade em que vivemos.

O esquema é feito para iluminar algo maior que ele: a vida, a vida do nosso dia a dia. Estamos no Século XX e isto não significa que todos nos percebemos a realidade com a maneira de ver do Século XX. Mesmo vivendo na mesma época, não somos totalmente contemporâneos. Do ponto de vista cultural, a nossa cabeça é muito complicada, pois dependendo do assunto usamos dados próprios do Século XV, mesmo estando vivendo no Século XX. E em outros assuntos usamos dados de nossa própria época.

2 - As relações fundamentais do homem.

Para explicitar o esquema mental partimos de quatro perguntas fundamentais: o que é o homem, como o homem se entende a si mesmo ? O que é a sociedade, como os homens se relacionam com os outros ? O que é o mundo ? Qual o sentido da nossa vida, qual o papel do Transcendente ? A maneira de compreender suas respostas se funde na unidade existencial e cultural de nosso esquema mental.

Todo homem é consciência e liberdade.

Tem portando uma relação fundamental consigo mesmo. Essa primeira relação não se entende num sentido psicoindividual, mas cultural. Trata-se da autoconsciência que o homem tem, como expressão de sua compreensão de si mesmo como ser humano.

Tal compreensão só é possível dentro do contexto social, nunca no auto-isolamento. Ela é decorrente de outras relações. O homem só poderá compreender-se, como ser humano, enquanto se choca com as realidades exteriores a si mesmo.

A segunda relação é a do homem com os outros homens. "O homem é um animal social" (Aristóteles). Vive inserido numa sociedade, onde mantêm inúmeras relações. Compreende-se fazendo história. Naturalmente, o tipo de consciência, que ele se faz dessas relações, variará ao longo da história.

Uma terceira relação é com o mundo, com o cosmos, com a natureza. O homem vive em contínua luta com a natureza. Esta lhe surge com um desafio, uma inimiga, que necessita ser domada, trabalhada, transformada. Neste processo o homem humaniza a natureza, transformando-se também a si mesmo. Essa relação sofrerá modificações ao longo da história, na medida em que ele consegue dominá-la, assenhorar-se dela. Talvez esta relação seja a determinante de todas as demais. O homem exprime o seu domínio sobre a natureza através do trabalho, das pesquisas científicas, das técnicas cada vez mais aperfeiçoadas.

A quarta relação se refere ao Transcendente. O homem necessariamente se situa diante da questão fundamental da existência ou não (teísmo ou ateísmo), da cognoscibilidade ou não (agnosticismo) de uma realidade que o supera, transcende a ele mesmo e a tudo que se lhe aparece como história e natureza. Essa relação é necessária e exprime um dos elementos fundamentais do esquema mental do homem.

O nosso esquema mental não é uma realidade explícita diante de nós. Subjaz a tudo que pensamos, valoramos, assumimos nas nossas decisões. A configuração global, que podemos ir constituindo, implica num esforço de análise crítica. Ficamos sabendo o esquema mental de uma pessoa a partir da argumentação que a pessoa apresenta de suas teorias e suas práticas.

3- Divisão didática.

A análise de cada esquema mental se fará de modo estrutural, ainda que se usem alguns elementos históricos, como explicação e elucidação, sem contudo querer carregar a ênfase sobre eles. Não corresponderia a nosso intento uma crescente complexificaçao, ainda que sintamos a dor do incompleto, o mal estar do esquemático simplificado.

Falamos em três momentos do esquema mental. O termo momento sugere de certo modo uma sucessão histórica. Há, contudo, uma lógica e superação de um momento para o outro, dentro de uma compreensão dialética. Temos, portanto, esquemas mentais em três momentos principais: momento do objeto, momento do sujeito, momento do social. Trata-se de um esboço sistemático de natureza predominantemente filosófico-cultural. A validade de tal abordagem parece-nos dever-se à importância de formarmos uma compreensão mais global e explicitada de nosso esquema mental, a fim de desenvolvermos nossa consciência crítica e entendermos outros universos culturais.

PRIMEIRO MOMENTO
MOMENTO DO OBJETO


O termo "objeto" assume aqui o sentido ordinário em Filosofia. Entende-se em relação ao "sujeito", em oposição a ele. O objeto assume aqui o sentido de "coisa em si", cuja existência é independente do conhecimento que os sujeitos pensantes têm dele.

Primeira relação: Do sujeito consigo mesmo - autoconsciência.

A característica fundamental dessa primeira relação nesse momento é a carência do caráter projetivo de consciência, em nível de conhecimento. Em termos mais simples, o sujeito se compreende como estando diante de objetos, de realidades, que têm significação por e para eles mesmos. Cabe ao sujeito conformar-se com a realidade (Fatalismo)

A verdade, o bem e o valor aparecem para o sujeito como exteriores a sua consciência. Tudo vem de fora do sujeito e já está tudo determinado, e com os quais ele deve conformar-se, do contrário temos o erro, o mal e o desvalor. O sujeito se vê diante da realidade como uma "tabula rasa". O sujeito ainda não consciência de que é gente.

O sujeito, embora em relação dialética com o objeto, contudo se percebe como sendo unilateralmente determinado pelo objeto. O sujeito é um acolhedor passivo de verdades, bens e valores que vêm de fora e que se tornam regras e normas para a sua consciência. O sujeito carece de autonomia. A sua própria consciência de liberdade é profundamente marcada pela obediência a uma lei divina ou natural, exterior a ela, que se lhe impõe.

Os fenômenos humanos são apreendidos como se fossem coisas, isto é, em termos não humanos ou mesmo supra-humanos. As realidades criadas pelos homens, que implicam opções, interessem bem concretos de pessoas e grupos, como a política, a economia, a história são vistos como algo diferente de produtos humanos, como se fossem fatos dados, acontecimentos naturais, sujeito às leis cósmicas ou simples manifestações da vontade divina. São típicas desse momento as expressões: "É vontade de Deus"," é obra do destino"; por exemplo, Figueiredo mandou o povo rezar ao "papai do céu", como se Deus fosse responsável pela falta de pão na terra.

Nesse momento, não se percebe de modo explícito e reflexo a criatividade humana, o agir da liberdade humana, de modo que o homem não se vê com autor do mundo. O homem não aparece na sua capacidade criadora. Possui uma consciência alienada: pois as realidades sociais, humanas são sentidas pelo homem como algo estranho a ele, "opus alienum".

Sua autoconsciência carece de consistência e necessidade de contínua referência a outra realidade para sua autovalorização. Por sua vez, tal autoconsciência pode exprimir-se dentro de dois horizontes bem diferentes. Num primeiro, a consciência, transcende-o. Durante milênios, o homem viveu nesse horizonte cultural. Num segundo, participando de um mundo divino, misterioso, que o homem dá consistência a seus atos. Por isso, o homem, na sua existência frágil, desprovida de sentido e de valor, busca mil maneiras de atrair essa força divina. Nesse horizonte mítico, a consciência vive tentada pela magia, pela necessidade de ritos, pela obsessão de comportamentos julgados "santos". Tudo isso de maneira inquestionável.

Segunda relação: O homem e seus semelhantes.

Esta carência de autonomia vai refletir-se na relação também coisificada com respeito à sociedade, à história. De fato, um homem que não se descobriu com valor, como liberdade e como autoconsciência, também carece de consciência do valor do outro.

Prevalece uma relação "coisal" entre as pessoas. Suas regras, seu valor são ditados, por sua vez, de fora, por uma moral extrínseca às subjetividades. Dentro desse horizonte, compreende-se porque a escravatura não era percebida na sua raiz desumana de violação do valor pessoal. Leis naturais, leis biológicas, até mesmo argumentos teológicos, apelando para a vontade de Deus, justificavam e explicavam suficientemente o fato de relações entre senhores e escravos. É só olhar os sermões de Padre Antônio Vieira. Compra, venda, troca de escravos e o domínio total dos senhores sobre eles eram formas concretas, que revelavam tal consciência.

Outro fato histórico bem concreto como a tortura, denota tal compreensão de relação "objetival" (como objeto) entre as pessoas. Em nome de uma verdade abstrata, a defender ou a obter-se, empregavam-se formas violentas na relação humana. A prática da tortura era percebida como mecanismo legítimo, desde que estivessem em jogo valores superiores, como a verdade, a Religião, o Estado, e até o machismo, etc..

Os reis, príncipes, todo tipo de autoridade apareciam diante de seus súditos como representantes de Deus como uma autoridade, portanto inquestionável. A estrutura social ganha, assim, a fixidez das leis eternas. A vida toda do indivíduo estava decidida pelo nascimento. Nasceu escravo, morre escravo. Tudo era por vontade de Deus. Falta ao homem a consciência de autor e produtor da história. Antes é um paciente, que a suporta. O destino e Providência legitimam e justificam, de certo modo, tudo que acontece na história, velando assim o caráter de decisão e de interesses humanos.

Terceira relação: O homem e a natureza (cosmos).

Relação de decisiva na configuração da consciência. Sem querer cair num determinismo mecanicista, pode-se dizer que o homem vai percebendo sua verdadeira realidade, vai formando sua consciência, no defrontar-se como o dado imediato da natureza. Nesse primeiro momento, o homem dobra-se obediente ao ritmo da natureza. Ainda não dispõe de recursos e instrumentos técnicos, que lhe permitam certa autonomia diante das leis da natureza. A natureza determina sua conduta. É obrigado a seguir o ritmo natural das coisas, já que não consegue dominá-lo. Noite é noite. A escuridão impossibilita-lhe fazer atividades próprias do dia. Não depende tanto dele (homem) escolher. Tal é-lhe ditado fundamentalmente pelo ritmo da natureza com suas exigências incontroláveis.

Neste momento predomina a cosmovisão fixista. O homem, não conseguindo dominar suficientemente a natureza e faltando-lhe, pois, essa consciência de autovalor, volta-se continuamente para a natureza como sua mãe fundamental. Não se trata de nenhuma mãe carinhosa. Impõe-lhe suas leis de modo inexorável. Cabe-lhe obedecer-lhe, submeter-se a ela.

Nesta perspectiva, a ciência desenvolve a tarefa de conhecer as estruturas essenciais do ser natural. É essencialmente determinada pela natureza, fazendo-lhe perguntas sobre sua essência. E a natureza aparece como algo que permanece sempre o mesmo e determinado em si. É a ordem eterna. É objeto da ciência, enquanto permanece imutável através das mudanças observáveis. O cientista, com sua inteligência, observa imediatamente os fenômenos na busca da essência. Esta é estável, fixa, sem mudanças. Ele transmite aos pósteros suas descobertas de validade e autoridade duráveis, na medida em que atingiram, de fato, as essências das coisas. A partir dessa constatação compreendemos porque vários cientistas tiveram dificuldades em divulgar suas descobertas e tê-las aceitas pela sociedade em geral e pela Igreja (Galileu, Isaac Newton e outros).

Quarta relação: Homem e Transcendente.

Os verdadeiros bem, valor e verdade estão fora do homem, da sua consciência e de sua possibilidade de criação. Isto significa que ele concebe a verdadeira realidade como algo que o transcende. Sua experiência histórica, mundana, não passa de cópia, de rascunho, de sombra dessa Transcendência. Estabelece-se uma relação de profunda dependência e de contínua busca de sentido no confronto da experiência transitória com a realidade definitiva e eterna.

São duas realidades, dois mundos paralelos. O mundo sobrenatural, divino e eterno é a fonte de sentido, de valor, de bem e de verdade. O mundo humano, histórico, transitório carece de sentido autônomo, próprio.

A realidade humana não tem verdadeira consistência e valor por ela mesma. Deriva-se da realidade transcendente e se refere continuamente a ela, à busca de sentido, de valor, de bem e de verdade. Tal Transcendente pode ser compreendido, seja dentro de uma visão de fé crista, como Deus, seja dentro de uma visão religiosa ou mágica, como seres ou espíritos superiores. Em ambos os casos, interessa ver o mesmo esquema mental de atribuir a uma realidade transcendente, fora da história, o papel dos verdadeiros atores na natureza e no mundo dos homens.

O significado do agir humano se deduz de seu caráter relativo a tal Transcendência. Esta se mostra através, sobretudo das leis, normas, regras, ritos, prescrições objetivas. E o homem será tanto melhor, quanto mais exato for no cumprimento objetivo de relacionamento com o Transcendente e não interpessoal. As regras dessa situação são definidas de fora pelo parceiro divino e a consciência humana não interfere, a não ser na linha de aceitação, submissão e acatamento.

EXEMPLOS

Este primeiro momento é um esquema mental característico de um período histórico que compreende até mais ou menos a Revolução Francesa, embora exista o caráter dialético dos momentos. Embora, hoje, no Século XX, existam pessoas e grupos que apresentam esse esquema mental. Então para compreender melhor, fazem-se necessário a narração de situações, maneiras de pensar, de agir em que ele se revela. Não se trata de fazer um juízo valorativo ético sobre as ações humanas. Dentro do mesmo horizonte cultural um homem pode ser justo ou injusto, na medida em que responde em liberdade e consciência aos apelos éticos da realidade apreendida por ele, de modo positivo ou negativo. Parecem necessário tais esclarecimentos a fim de evitar julgamentos anacrônicos, com críticas a condutas morais de pessoas ou grupos concretos na história, a partir de outro momento. Ao trazermos alguns exemplos concretos para elucidar o primeiro momento, não queremos fazer nenhum juízo moral sobre o horizonte de percepção que ele revela.

a) Papel do horizonte religioso.

Dentro desse primeiro momento, o elemento religioso desempenha papel absolutamente preponderante, seja dentro de um horizonte mítico, seja já em compreensão metafísica da realidade. Na sua base, está a carência do autovalor, da autonomia, da consciência humana, com conseqüente dependência em relação à realidade transcendente.

O mundo sagrado e divino, apresenta-se como a única e verdadeira realidade, prenhe de sentido e fonte de valor, e de bem. A religião ocupara então espaço decisivo na vida humana, abrangendo todos os rincões, para dar-lhes sentido, valor. Acontecerá, então, uma tríplice sacralização da experiência humana: ontológica, temporal e espacial. O mundo das ações e realidades humanas é profano, carente em si de valor. É simplesmente natural. Não tem valor eterno. Não tem significado além da morte. É perecível. Portanto, quem vive tal realidade está fadado à morte, não levando nada para uma vida definitiva. Ontologicamente nossa vida é sombra sem consistência. É o mundo divino que tem consistência, valor e significado. Quanto mais elementos do mundo sagrado envolverem, penetrarem nossa realidade, mais esta adquire valor e significado.

As pessoas manifestavam tal compreensão, julgando os sacerdotes e religiosos mais perto de Deus. Não raro se dirigiam a eles pedindo orações e bênçãos. Muitas vezes ficavam horas ouvindo-o, sem nada entender do que fala, simplesmente porque estão em contato com um "santo" (sic).

Outra preocupação vai na direção de sacralizar o tempo. O tempo profano, o dia de trabalho, enquanto tal, não tem valor em si mesmo. Sua consistência virá na medida em que for assumido pelo sagrado. Então se arruma nome de santo para cada dia.

Quantas vezes ouvimos, em criança, que tomar uma refeição, sem rezar antes, é comer como animal. O ato de uma família reunir-se em torno da mesa, em paz, alegria, fraternidade, amor, não era visto como uma ação de valor "sobrenatural", mas sim o ato de rezarem antes de comer, mesmo que, muitas vezes, a refeição não fosse fraterna. A valorização não vinha do aspecto humano do encontro da família em torno da mesa, mas do caráter sobrenatural da oração feita antes e depois do ato.

A sacralização do espaço constitui outra pilastra de sustentação de tal esquema mental. Lugares e objetos arrancados do mundo profano transformam se em sagrados através de bênçãos especiais. Assim pessoas, casas, agências bancárias, todo tipo de lugar, automóveis, etc. são santificados pela bênção, entrando assim no mundo sacral. Os lugares se santificam quando levam os nomes de santos: Loja Nossa Senhora Aparecida, Colégio Cristo Rei, Farmácia São Bento, Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro; ou imagens para sacralizar a cidade: o Cristo Redentor, no Rio, de braços abertos, abençoando a cidade, com toda a sua miséria, violência, assaltos...

Dentro desse modo de compreender a realidade, facilmente se coisifica, se objetiva, e se quantifica o religioso. Não se vê tanto o seu aspecto de sinal, de símbolo. Identifica-se com a própria materialidade da coisa a sua função religiosa simbólica.

Volto a insistir que não se trata de um juízo ético sobre atitudes. Trata-se de uma questão de percepção. Os exageros e o ridículo de muitos comportamentos servem simplesmente para mostrar-nos como uma tendência oculta nesse esquema mental pode ser levada ao extremo. Nada impede que tal dimensão seja vivida em autenticidade e sinceridade.

b) A importância do objetivo e do positivismo jurídico.

Predomina, neste momento, a preocupação com o aspecto objetivo das coisas. Bastam alguns exemplos. No campo da verdade temos o típico fenômeno da ORTODOXIA. A preocupação fundamental consiste em determinar com rigor os aspectos objetivos da formulação da verdade. Esta é eterna, absoluta, e imutável. A partir do quadro objetivo das verdades, traça-se a linha das fronteiras do erro. Tudo que estiver fora de tal quadro e não se conformar a ele é falso. Exemplificando: Galileu foi condenado porque destruiu o trono de Deus ao elaborar um novo mapa do universo. Isaac Newton ficou a perguntar onde afinar Deus vai morar, quando elaborou suas fórmulas - a lei da gravidade (afinal o trono de Deus estava lá em cima).

Nesse momento, a verdade é vista somente do lado do objeto, como se a inteligência não passasse de mero receptor de uma verdade toda dada e vinda de fora. O sujeito histórico não entra na sua constituição. A verdade não é vista como "produto humano", mas como apreensão por parte do homem de uma evidência objetiva, exterior a ele. O esforço e a luta desse horizonte se concentram no estabelecimento e defesa do quadro exato e rigoroso das verdades. E por elas, foi-se capaz de morrer e matar.

c) outros exemplos.

Ao tratar de "libertação" dentro de tal esquema, acentuam-se aspectos estáticos e fixos. O mundo, que realmente escraviza o homem, se situa na dupla dimensão intelectual e moral. Na primeira temos o erro, a falsidade e a ignorância. Na segunda, o vício, o pecado objetivo, a injustiça, a maldade. A libertação consiste, pois, no processo objetivo de passagem desse mundo de erro, ignorância, falsidade para a verdade e o conhecimento correto. Significa deixar o vício, o pecado em direção a virtude e ao bem. A compreensão fica dentro de um quadro objetivo, exterior à subjetividade e à sua inserção histórica. Os aspectos dos entraves subjetivos e sócio-estruturais ficam fora de tal ótica.

CONCLUSÃO

O questionamento fundamental que subjaz o tal esquema é a pergunta pela essência das coisas, na sua natureza. Existe uma preocupação metafísica tradicional. O aspecto objetivo domina o horizonte de compreensão, com tudo que isso significa de concepção estática, fixista da realidade, da natureza e dos acontecimentos.

A pergunta básica é : quid est ? Que são as coisas ? E as respostas buscam ser definitivas. Esse universo mental correspondente naturalmente mais a uma sociedade profundamente marcada por relações estáveis; não acionada ainda pelas grandes descobertas territoriais dos séculos XV e XVI e pelo desenvolvimento das ciências e técnicas dos séculos seguintes.

Entretanto, não raro, acontece que pessoas vivendo já uma sociedade sócio-político-econômica e cultural diferente mantêm esquemas de outra sociedade. A revisão crítica se faz com muita lentidão e nem sempre coerentemente. Muitas vezes acontece que em muitos elementos estamos presos a esta cosmovisão do primeiro momento, enquanto que em outros pontos assumimos e assimilamos elementos mais de outro momento. Esta divisão em momentos tem apenas um caráter didático. Isto lhe garante certa artificialidade. É simplesmente uma ajuda a fim de melhor entender certos comportamentos, atitudes e mentalidades.

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Sobre o Autor

Henrique Chagas: Henrique Chagas, 49, nasceu em Cruzália/SP, reside em Presidente Prudente, onde exerce a advocacia e participa de inúmeros eventos literários, especialmente no sentido de divulgar a nossa cultura brasileira. Ingressou na Caixa Econômica Federal em 1984. Estudou Filosofia, Psicologia e Direito, com pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e com MBA em Direito Empresarial pela FGV. Como advogado é procurador concursado da CAIXA desde 1992, onde exerce a função de Coordenador Jurídico Regional em Presidente Prudente (desde 1996). Habilitado pela Universidade Corporativa Caixa como Palestrante desde 2007 e ministra palestras na área temática Responsabilidade Sócio Empresarial, entre outras.

É professor de Filosofia no Seminário Diocesano de Presidente Prudente/SP, onde leciona o módulo de Formação da Consciência Crítica; e foi professor universitário de Direito Internacional Público e Privado de 1998 a 2002 na Faculdade de Direito da UNOESTE, Presidente Prudente/SP. No setor educacional, foi professor e diretor de escola de ensino de 1º e 2º graus de 1980 a 1984.

Além das suas atividades profissionais ligadas ao direito, Henrique Chagas é escritor e pratica jornalismo cultural no portal cultural VerdesTrigos (www.verdestrigos.org), do qual é o criador intelectual e mantenedor desde 1998. É jurado de vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, entre eles o Prêmio Portugal Telecom de Literatura.

No BLOG Verdes Trigos, Henrique anota as principais novidades editoriais, literárias e culturais, praticando verdadeiro jornalismo cultural. Totalmente atualizado: 7 dias por semana.

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