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A Eficácia do Parafuso

por Chico Lopes *
publicado em 29/02/2004.

Conhecer uma obra-prima na juventude, nos anos em que as primeiras leituras deixam as impressões mais duradouras, intrigar-se com ela, lê-la, relê-la e treslê-la, depois, nos anos maduros, escrever e publicar um livro na qual um trecho dela consta como epígrafe, e, finalmente, ser convidado a traduzi-la para uma editora que está começando, foi o que aconteceu comigo em relação à novela “A volta do parafuso”, um dos clássicos do escritor norte-americano Henry James.

Eu parecia – naturalmente, não sabia disso – predestinado a conviver de muitas maneiras com essa narrativa. Esqueci-me de acrescentar que o filme que dela foi adaptado – “Os Inocentes”, do inglês Jack Clayton, de 1961 – é, para mim, como para muitos outros apreciadores de cinema, o protótipo do filme de terror psicológico bem-sucedido.

Uma coisa é ler um livro, gostar dele, fazer releituras apaixonadas, descobrir nelas inúmeras relações novas, mas é bem outra o ser incumbido de traduzi-lo. No trabalho de uma nova tradução de “A Volta do Parafuso” (há pelo menos duas no mercado brasileiro faz bom tempo) para a editora Landmark, de São Paulo, entre junho e setembro de 2003, encontrei-me diante do texto publicado pela Penguin Books em pocket da coleção Penguin Popular Classics, edição de 1994.

Tive a impressão muito viva de que conhecia a novela muito mais do que pensava conhecer, uma dessas sensações que fazem com que um leitor entusiasta se sinta privilegiado: a de que aquela história tinha se aninhado em meu espírito de forma definitiva, desde a primeira leitura, talvez, e que, traduzindo-a, eu entraria em contato muito mais íntimo e profundo com suas intenções e mistérios, podendo percorrer os caminhos pelos quais Henry James a engendrara e - ouso dizer - sentira. Sem essa crença de que existe a possibilidade de uma comunhão espiritual concreta entre o autor e o tradutor através de uma obra a ser transposta para outra língua, creio que o ofício da tradução não faz sentido. Ela pode ter suas fumaças de misticismo bem discutível, mas é essencial, do ponto de vista emotivo, para que a técnica e a competência não sejam mera técnica e mera competência, que se possa acreditar nessa transfusão.

Era mesmo uma beleza: eu tinha que seguir um caminho já conhecido, mas de um modo especial, conhecendo melhor, a cada palmo, as razões por que tê-lo percorrido tantas vezes no passado fora tão emocionante. Nada é melhor para um apaixonado que confiar a ele a tarefa de reerguer o objeto de sua paixão detalhe por detalhe. Uma idéia feliz me animava: a de que, através dessa minha oportunidade de tradução, eu faria com que uma nova geração de leitores travasse um contato febril (como foi o meu primeiro) com uma obra admirável cujos mistérios permanecem em aberto – felizmente, para garantia de seu permanente encanto.

SINISTRA E PEÇONHENTA

Fazer sinopse da história contada por um clássico muitíssimo conhecido é tolo, mas é preciso levar em conta o pouco que se lê no Brasil e que há muita gente nova para quem essa novela, embora muito citada, pode ser solenemente desconhecida. Eis a situação: uma mulher jovem, solteira, filha de um pároco de um vicariato rural, vai a Londres atender a um anúncio em que se oferece emprego para uma preceptora. O tio de um casal de crianças órfãs, solteiro, bonitão e mundano, precisa de uma moça para cuidar dos pequenos, que são, para ele, um grande incômodo. O que ele exige? Que a moça que se dispuser ao trabalho vá para uma propriedade, Bly, no interior da Inglaterra, e fique lá, cuidando das crianças, sem aborrecê-lo de modo algum com os problemas, podendo – na verdade, devendo - resolver tudo sem que a vida brilhante dele em Londres seja perturbada. É uma exigência absurda e egoísta, mas ele é encantador, percebe que ela é suscetível a esse encanto e um contrato obviamente chantagista é feito. Ela rumará para a propriedade, fará amizade com uma servidora rude e confiável, descobrirá que as crianças são excepcionalmente inteligentes e belas. Até que certas verdades, nada agradáveis, começarão a aparecer.

Isso ajuda e é pouquíssimo. Em Henry James, a trama pode ser pequena ou nenhuma, visto que o decisivo é a maneira pela qual é narrada. E, nesse caso, estamos diante de uma arapuca finamente armada: a narrativa, decididamente, é suspeita. No preâmbulo, estamos em uma sala vitoriana em que uma história de fantasmas foi contada e um seu ouvinte promete ao grupo atento que tem uma muito mais terrível para narrar, excitando a todos. As suspeitas podem começar já aí, visto que esse narrador – que faz da coisa um teatro bem calculado – aparece sob as luzes duvidosas da manipulação e está envolvido pessoalmente com a coisa. É mais indireto: a história aconteceu com uma mulher que foi governanta de sua irmã e que ele conheceu quando pequeno. Na verdade, apaixonou-se por ela. E ela – naturalmente, a jovem que pegou a vaga de preceptora a que nos referimos - lhe deixou o manuscrito em que conta tudo. É preciso acreditar na fidelidade desse manuscrito. Mas, pode-se duvidar à vontade, à medida em que se vai conhecendo a narrativa da preceptora. Tem-se a impressão de um mecanismo de sedução que gira em muitas direções – tudo é extremamente ambíguo, tudo está implicado em alguma outra coisa e a narrativa tem que ser desde o início vista como algo que nasce sob o signo da arbitrariedade - dos personagens e do autor.

Essa preceptora é um dos personagens mais ambíguos de um escritor pródigo em ambigüidades. Deitou-se tinta a fartar sobre seu caráter duvidoso e sobre sua condição de virgem vitoriana cheia de imaginação e frustração sexual em doses idênticas. Incumbida do casalzinho de órfãos, ela descobrirá que há, por trás deles, duas figuras que moraram em Bly e de cuja existência já não se fala mais: Peter Quint, o criado de quarto do tio, que a contratara, e Miss Jessel, a preceptora anterior das crianças.

Os dois estão mortos. A descoberta é pavorosa, mas, muito à maneira ambígua do autor (e, como tradutor, garanto que sentia uma espécie de sorrisinho de James pairando nessas construções irônicas), é feita quando, numa tarde, devaneando romanticamente, ela imagina que seria emocionante encontrar-se com a bela figura do tio que a impressionara nas cercanias da casa. Sua fantasia se concretiza, e ela encontra um homem desconhecido. Não era, naturalmente, o seu contratante. Era um espectro, o que ela não sabe. Mas a motivação romântica, mesmo através do horror que sentirá quando a verdade lhe for revelada pela servidora, permanecerá – o homem era bonito. “Bonito, mas infame...”, como diz. Vestia roupas que visivelmente não eram dele. “São do patrão”, dirá, acabrunhada, a criada que bem o conheceu. Ela o julgou, a princípio, um intruso intolerável – na verdade, era alguém da casa. E assim começará a desesperadora tentativa de proteger as crianças de verem o fantasma – mais tarde, fantasmas – até que outra descoberta, mais aterradora, se imporá: as crianças sabem e, na verdade, escondem que sabem, encontrando-se com os espectros furtivamente. É caso para enlouquecer, e não é de todo implausível que o manuscrito tenha sido engendrado por uma mulher louca.

O que é imaginado, o que é verdadeiro, nessa história? O público se dividiu enormemente com essa questão. “A volta do parafuso”, publicada no início em forma de folhetim, no Collier´s Weekly, em 1898, teve grande repercussão e polêmica. Oscar Wilde, ninguém menos que ele, disse que era “uma pequena história maravilhosa, sinistra e peçonhenta.”

É uma história poderosamente sugestiva e que pode ir sendo descascada, camada por camada, sem que um miolo unívoco seja atingido. Wilde deve ter levado bem em conta as amplas possibilidades de perversão sexual que contém. Peter Quint, monstro, é um homem desejado. Mantinha um caso com a preceptora anterior – caso no mínimo escandaloso (do ponto de vista dos criados, que nada podiam fazer a não ser testemunhar e fuxicar) e que era testemunhado (mais tarde, sugere-se que imitado) pelas crianças. Os outros empregados não podiam falar dele, para não chatear o patrão, que o deixara lá para tomar ares do campo e sarar de alguma doença não explicada. Que espécie de intimidade era essa com o patrão, de quem usava as roupas? Morto, ele é um duplo do tio “gentleman”, duplo letal e paródico, que surge para a preceptora cheia de sonhos como a realidade sórdida que há por trás de seus ingênuos ideais românticos. Não é preciso ir muito longe para se imaginar homossexualidade nessa relação do criado de quarto com seu patrão, até porque persiste, nas impressões posteriores da preceptora, a sugestão de que o menino, Miles, fora expulso do colégio por dizer coisas estranhas aos colegas, com atitudes nitidamente influenciadas por seu convívio com o morto.

Homossexualidade, incesto, pedofilia e o que mais se quiser estão nas suspeitas da preceptora e nas do leitor, às margens de uma história vitoriana de fantasmas. Num folhetim com jeito de apelar para a habitual cumplicidade de leitoras e adular o ego feminino, James conseguiu colocar tudo isso com suprema elegância, poesia e com uma peçonha de mestre.

O PRINCIPAL SUSPEITO

Sexo e morte são o assunto dessa novela, na verdade. E estão organicamente interligados, porque é evidente, no contexto de puritanismo vitoriano em que a história transcorre, que a narradora é um pouco como uma personagem de Charlotte Brontë (pensa-se em Jane Eyre), tomada por anseios românticos, encontrando, numa atmosfera típica do romance feminino inglês – o casarão vetusto em que há um mistério – não o galã sonhado, mas um morto que não perdeu seu atrativo sexual. James estava consciente desse ângulo paródico e se refere à hipótese-clichê do “parente louco” no texto. Nesse contexto, sexo só poderia aparecer na forma de um demônio. Não haveria lugar para ele de uma maneira sã na cabeça de uma filha de pároco rural cheia a um só tempo de imaginação e preconceitos.

Sexo, então, tem que ser uma coisa reprimida, indesejada e apavorante – um fantasma. Naturalmente, tal fantasma tem uma atração irresistível, e essa tensão entre monstro e fauno de Peter Quint dá ao texto riquezas ambíguas sem conta. Ele, o fantasma, é sempre comparado a um animal, mas é, ao mesmo tempo, exatamente por conter tudo de instintivo e permissivo, ou seja, de execrável, que encarna aquilo que a preceptora desejou – sem permitir que lhe subisse à consciência – no tio gentleman, e, depois, no menino de cuja educação cuida (o tempo todo ela se relaciona com o pequeno como se fosse um homem adulto, sedutor, em miniatura). As implicações dessa história não param de se estender, em múltiplas direções, nenhuma delas inocente.

As interpretações ficaram por conta da finesse – e da grossura – dos leitores. E mesmo hipóteses metafísicas e religiosas tinham que se erguer em torno da novela. No Brasil, país onde o Espiritismo tem uma força nada desprezível, houve uma edição chamada “Os Inocentes”, por uma casa editora espírita de Matão, SP. Era um prato feito para a doutrina essa história da possessão de duas almas infantis por dois espíritos malvados, que podiam ser vistos como os “obsessores” a que os espíritas geralmente se referem. Não encontrei, em nenhum lugar, informação de que James tivesse acesso a esses simplismos kardecistas e, com seu espírito refinado, se o teve, na certa não os levou a sério. Dar aos “possessores” uma existência objetiva, independente e maléfica, isolando-os da subjetividade das crianças e da preceptora, é uma redução das mais estúpidas.

No filme “Os Inocentes”, Truman Capote foi um dos roteiristas, e sua percepção de literato deve explicar em parte a felicidade dessa adaptação, que termina de maneira decididamente menos ambígua, com a preceptora beijando na boca o menino que lhe morre nos braços. Capote deu forma até um pouco grosseira a uma conjetura.

Essas dúvidas com relação à veracidade da narrativa e à sanidade mental da narradora, que por vezes se transformaram em outras tantas duvidosas certezas, marcaram a análise da novela. E por isso é surpreendente encontrar, em “A arte do romance”, de James, recentemente lançado no Brasil em tradução de Marcelo Pen, o autor em nada se referindo às decantadas neuroses da preceptora, dizendo que sua intenção, ao escrever a novela, era fazer uma história de fantasmas, um entretenimento em que prevalecesse um tom de “trágica, mas requintada perplexidade”.

Entre as intenções de James e as interpretações que a novela suscitou, há um abismo curiosamente... jamesiano. Essas leituras em aberto, capaz de levarem a grandes acertos e enormes absurdos, na certa deliciaram o autor. Mais (ou menos) apropriadamente, talvez, pode-se dizer que, entre os fantasmas aí tecidos, encontra-se um outro, bem sólido: o da própria Literatura, que se ergue, no lugar do real, como uma fonte de possibilidades vertiginosas. “A volta do parafuso” tem dois narradores e sabe Deus quantos infernais giros interpretativos; os deleites pantanosos que oferece parecem não ter limites. O principal suspeito, sem dúvida, é James, o artífice de um artifício que, a partir de si, se espatifa em milhares de espelhos que se refletem e hipóteses que se erguem e se desdizem. É a eficácia do parafuso. É o prazer de criar outros mundos, com uma perigosa e sedutora autonomia, que a Literatura nos dá.

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

Email: franlopes54@terra.com.br

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