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Feliz Ano Novo

por T.M. Castro *
publicado em 02/01/2008.

Era a década de oitenta, oitenta e dois, talvez. Eu beirava os dezessete anos. Dia trinta e um de dezembro.

A Noite de Ano apresentava-se como de sempre, um saco familiar em que todos os gatos adquiriam sua verdadeira cor. Uns bebiam uma garrafa a mais; outros reclamavam do filho mais velho, sempre atrasado para a reunião e com os olhos injetados, conjuntivite de canabis; outra, usando um vestido branco que parecia começar na cintura, causava furor em nossa avó, vera matrona, real matriarca, tivéssemos então a grana que um dia se foi. Primas e namorados, sempre a procurar lugares ermos dentro da grande casa, como se houvesse moitas e arbustos em salas desusadas, em despensas de armazenar gêneros, em salas de livros e lugares que tais, despertavam comentários entre as duas empregadas e o jardineiro que ainda restavam do antigo plantel (saudável hábito nordestino este de manter criados por gerações a fio: conforto para uns e sobrevivência para outros e não há como mudar nem reclamar, tente-se). Na casa, em noite de ano novo, já se encontrou casal inspecionando a caixa d’água, trinta degraus acima do solo, gente no porão procurando obras de arte perdidas e por aí ia.

As conversas, sempre as mesmas: tio Heráclito, velho comunista de uísque, não cansava de pregar o sucesso do maxismo no leste europeu, elegendo Tirana como a nova Paris. Dom Raimundo, o monsenhor que emprestava dignidade católica ao clã, esbravejava, praguejava, tomava um gole a mais, finalmente mandava o comunista pra puta que pariu, pedia escusas pelo destempero, culpava o uísque, pedia outra dose e invocava o papa, exterminaria Sua Santidade o mal herético do ateísmo histórico.

Nos amplos jardins, os menores corriam de lá pra cá, inventando pegas em corridas, esconde e pega, até à queima de fogos, o que era levado a cabo por tio Cláudio, ex-seminarista, ex-professor, ex-dono de confeitaria e, à época, no ano que invoco, dono de uma academia de ginástica, pelo que se fazia acompanhar de um Apolo e/ou dum Adónis, musculosos, viris e sempre mui bem vestidos. Enfim, no ano novo, todos os gatos se mostravam em sua real pelugem, como se os circunstantes não observassem as nuanças dos pêlos de cada qual.

Naquela noite de Ano Novo, em especial, havia um clima de inquietude, de descobertas, de algo mais, de coisa fora do lugar, de rabanada fora do ponto, o clima estava mais para Carnaval de improviso. Para começar, a velha avó, a matrona, cansou dos preparativos e se recolheu ao argumento de que ia rezar. Fui lá conferir. O cheiro de vinho do porto me explicou seu profundo sono às onze da noite.

Aquele foi o último Ano Novo de vovó. Morreu ela em abril, na Semana Santa, como convém a uma viúva católica com imensa prole e reprole e tripole: filhos, netos e bisnetos. Ao dormir no Ano Novo, não viu tio Hildo chegar com sua quinta consorte, Ivonete, loira tipo calendário de propaganda de pneu, usando escasso vestido de um abundante vermelho, que, embora diminuto, despontava qual imensa mancha vermelha em meio a espumas brancas, Ivonete, qual o pecado, óbvio, perceptível a olho nu, qual uma cobra coral em meio a branco aprisco; era Noite de Ano, brancas vestes diz o costume; brancas vestes, naquela noite, tenho que para realçar, mesmo sem seu esforço, a lascívia que o carmesim sugere, a qual advinha mesmo das chispas emitidas pelos rápidos e dançantes olhares masculinos, globos nervosos, escuros, injetados por efeito do álcool a lançar diminutos e luminosos dardos que eram captados por aqueles outros verdes, grandes, vaidosos e receptivos, de Ivonete.

Tio Hildo, com seus 115 quilos, sempre chegava com um novo e imenso carro; era ele dono de um próspero negócio de carros usados, de uma ampla e confortável casa com piscina à beira-mar, de reluzentes e grossos cordões e pulseiras de ouro e de uma nova loira por ora, Ivonete , sempre. Vovó o tinha como preferido, mas não o desculpava pelas várias mulheres, pelo cordão de filhos e pelos arrotos que expelia após ingerir um mero pastel ou um quilo e meio de costela com cuscuz.

Hildão, depois de uns sofisticados maltes, ao se locomover para o banheiro, não deu com um desnível do pátio e saiu catando milho até bater com a cabeça na quina de um aparador de cimento armado. Sangue pra todo lado: “Ai, minha cabeça, perdi minha cabeça, socorro, acuda, vou ter um derrame, uma congestão...”

Os homens ao hospital, inclusivemente meu pai, carregando Hildão. Os meninos frustrados, pois a queima de fogos não aconteceria. Leitões, farofas, arrozes de passas, doces de toda sorte, tudo ao oblívio, cobertos, em clima de funeral. Primos e namoradas, primas e paqueras sentados esparsamente em ritmo de espera, tipo “Esquenta não, ainda hoje vai dar certo”. As mulheres, bebericando vinho do porto, comentavam da gravidade do acidente e repisavam velhos episódios, “Pancadas assim sempre levam a desfechos trágicos dias depois”, “Aconteceu a mesma coisa com o marido de fulana; isso pode dar em vestido preto. Cruzes.” E por aí o Ano Novo ia chegando, mas não chegou.
Deu queima de fogos alhures, deu uma hora, deram duas, deu sono em todo mundo; os convivas que ficaram, as mulheres, desistiram de esperar. A qual mais sonolenta, cada uma mais frustrada, todas se aboletaram nos carros disponíveis e foram para suas casas. Primos e primas com suas presas se animaram e acorreram às boates para salvar a noite.

O casarão vazio, vovó aos embalos do porto, mamãe ao ritmo de calmante e pílulas para enxaqueca, as empregadas, já em suas alcovas, ao cobrirem a comilança com brancos linhos, deram à casa um clima de abandono, de Finados. Eu, filho único, sozinho a percorrer a casa para verificar de sua segurança em termos de trancar portas, de soltar cães, de acender lâmpadas estratégicas contra ladrões e, enfim, de levantar o gradil da cama de vovó para impedir que ela amanhecesse no chão. Tudo pronto, rumo a meu quarto, fim do corredor do andar de cima.

Que maçada ter de andar tanto! - até há pouco, meu quarto era o primeiro após os degraus, perto do imenso banheiro do meio do corredor. Mudanças aborrecidas... Deram-me então o de hóspedes e, para comodidade de visitantes, puseram o meu à disposição de eventual pernoitador, coisa comum em grandes casas e grandes famílias.

Tiro o paletó no corredor, solto a gravata ali também, afrouxo o cinto das calças, já abro a braguilha, empurro a porta do quarto, acendo a luz do cubículo de entrada, clareando indiretamente a parte principal do vasto cômodo; o choque causado a meus olhos pela tênue lâmpada, acostumados à escuridão do corredor, deu-me a sensação de ver manchas na parte do quarto que remanescia em sombras; manchas vermelhas me trouxeram à mente a figura que me marcou o fundo do plexo a noite toda, que me dera a vontade imensa de correr a meu quarto para imediato alívio, ao que resistira. Ali, em meio às sombras, perseguia-me a mancha de meio vestido vermelho (a veste começava da cintura pra baixo); aquele ardor ao pé da virilha me dava ilusões, vi um vulto; o vulto ao menear a cabeça deixava reluzir sob estiletes de raios, filamentos dourados artificialmente, creio, oxigenados. Aproximei-me, acendi a do abajur, unhas gritantes, batom diabólico, impecável, pede-me: “ Toínho, me leva pra casa”, “Não tenho carteira, só tenho dezessete anos, sabia? “ Que bela idade, tenho quinze mais que você”, “Sua idade também é linda, aliás, você é linda, “ Então vou dormir aqui”, Claro, fique à vontade, vou para o quarto de hóspedes”, “Ué, não é este?” Não, foi trocado, agora é o meu, caduquice de vovó, mas fique aí mesmo” - e ela, espreguiçando-se: “Faz assim, quando eu dormir você vai para o de hóspedes, tá, conversa um pouco? Ai que porre, Veuve Clicquot engana qualquer um... você tira meus sapatos? também não consigo desabotoar o vestido, aqui, detrás, ai Toínho, onde você aprendeu tanta delicadeza? Hildão vai ficar a noite toda em observação, liguei para seu tio Heráclito... sua calça está caindo, gato, você está desabotoado, que cueca branquinha, esquenta não, Toínho, deixa ela cair duma vez...” E assim aconteceu, a calça caiu...

Dia seguinte, Dia da Fraternidade Universal, todos acorreram à mansão para os leitões, rabanadas, sopas de lentilhas, fogos de artifício, mais champanha, mais uísque, mais empregadas, as auxiliares, mais primos, mais primas, mais paqueras, mais meninos, mais visitas aos ermos da casa, mais descargas nos sanitários... Ano Novo atrasado, sem inquietação nervosa, sem briga, sem maxismos, sem pragas de Dom Raimundo, que, tomado pelo milagre da recuperação de Hldão, cantava louvores ao suposto fatídico, recurso com que o Altíssimo põe à prova o amor de seus súditos para compensá-los com mais alegria e ali, estampada na cara de todos, estava a prova: vovó alegre com a festa, mamãe sem enxaqueca, Ivonete acariciando a lesionada fronte do namorado, Hildão, ele, com seus solenes arrotos, tio Heráclito já admitindo uma interferência superior para o feliz desfecho, as rabanadas refeitas e suculentas, os leitões a sorrir com reluzentes maçãs entre os dentes, enfim as comidas fresquinhas em flor.

Fui elogiado por minha presteza em acudir a tudo, inaugurando-me como homem da casa. De fato, dali pra frente me vi diferente, deixara algo para trás. Desde então, o Ano Novo, com suas noites de brancas e gélidas nuvens, feito pó de gelo seco, só me desperta nostalgia.

Sobre o Autor

T.M. Castro: Temístocles Mendonça de Castro – é formado em Direito, lecionou em Faculdades, foi Promotor do Júri, Procurador de Justiça, Procurador do Cidadão, e hoje está aposentado. Vive entre Alexânia, GO, e Brasília, DF. Um texto seu já foi publicado no site messageinabotou, de Brasília.

Contato com o autor por email: temisbsb@terra.com.br

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