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O detetive Alyrio e as paisagens noturnas

Fabio Silvestre Cardoso*

De um modo geral, os romances policiais obedecem a regras tão esquemáticas que estas já pertencem ao senso comum, tal como o fato das personagens serem eivadas de mistério, assim como boa parte das intrigas e do cenário em volta estar sob o olhar clínico do detetive particular. Este, por sua vez, tem como grande aliado uma arguta percepção da realidade que acontece ao seu redor. Além disso, o detetive sempre parece enxergar mais do que as outras personagens. Em que pesem todos esses adereços, o bom romance policial tem como objetivo sugar por completo a atenção do leitor, a ponto de não deixá-lo em paz até que a leitura esteja terminada. No caso de Paisagens Noturnas (Ed. Landscape, 2003), a autora Vera Carvalho Assumpção segue a trilha certeira desses elementos esquemáticos, porém trata com elegância um tema que facilmente teria caído no realismo quase banal (tão em voga) das ficções que realçam a violência. Nesse sentido, mais do que cumprir o script, a obra busca novos rumos e novos enredos para o gênero policial.

Tendo como pano de fundo o passado da Academia de Ciências Sociais e Jurídicas do Largo de São Francisco, famosa por abrigar os jovens que imitavam os poetas românticos europeus, o livro versa sobre a investigação de um crime aparentemente solucionado. Rita Bastos, professora de uma escola de periferia, foi encontrada morta próximo ao colégio que lecionava, na periferia de São Paulo. Para a polícia, o assassinato foi vingança de dois alunos com quem a professora brigava, uma vez que ela não aceitava a venda de drogas no colégio. Os dois confessaram o crime. No entanto, depois que foram presos, um deles fugiu e o outro foi morto na cadeia.

Não contente com o resultado da averiguação feita pela polícia tampouco com o que ocorreu em seguida com os assassinos, o irmão de Rita contrata um detetive particular para descobrir as pontas soltas do crime. E é aqui que entra em cena o universo de Alyrio Cobra, homem de estirpe, cético e cuja visão de mundo é bem crítica em relação à sociedade. E isso fica bem claro quando, nas primeiras linhas do romance, ele teoriza acerca de sua profissão: “Nós, detetives particulares, somos os termômetros da moral estabelecida. Como representante da classe, afirmo que nossa sociedade está esfacelada, podre. Não acredita em mais nada além da grana”. Embora breve, essa afirmação traça um perfil exemplar do pensamento do detetive Alyrio. Ao longo do livro, ele mantém uma coerência muito peculiar em relação aos fatos. Do mesmo modo que é cético no que se refere ao presente, ele também é nostálgico quando se trata dos valores e do passado de sua cidade.

De fato, é o detetive Alyrio Cobra quem descobre a peça-chave que associa o assassinato da professora a tantas outras mortes que ocorrem com jovens em circunstâncias misteriosas. Trata-se das paisagens noturnas, quadros que são pintados pela artista plástica Domitila, que a partir do quarto capítulo passa a figurar como coadjuvante importante para a descoberta do caso. A partir daí, o leitor verá o detetive encurralado, quase sem evidências objetivas, tendo de lidar mais com a intuição do que com os fatos em si. Nesse ponto, ainda, surge uma nova hipótese para a explicação do ocorrido: a relação entre as vidas passadas e as pessoas assassinadas. É a pintora quem primeiro traz à baila essa teoria. Segundo ela, “existem inúmeras vivências pelas quais uma alma pode passar, ou seja, suas vidas passadas”. É com essa possibilidade que o detetive irá travar o verdadeiro duelo para desvendar o enigma dos assassinatos.

Utilizando as mesmas palavras do detetive, não há pontas soltas em Paisagens noturnas. O romance está bem amarrado e o desenvolvimento da história consegue prender o leitor do começo ao fim. Para chegar a esse resultado, a autora combina os acontecimentos com ótimas descrições de personagem, como a que segue: “Neste momento entrou no escritório um homem franzino, cabelos lisos cor de estanho, magro feito um palito e feições de quem era extremamente chato (...) [Depois,] Alyrio sentiu que toda a fraqueza da figura era compensada pela força das palavras. Elas vinham como uma ordem seguida de um olhar muito penetrante que não aceitaria negativas”.

Em outras passagens, contudo, a menção ao assunto das vidas passadas (ainda que seja parte da narrativa) faz com que o livro resvale na especulação esotérica como se fosse o único argumento plausível para determinados casos. No entanto, isso era refutado muitas vezes pelo próprio detetive: “Pelas palavras, por tudo o que vira, nada indicava qualquer relação com o assassinato, mas sua intuição se alvoroçara. Será que também ele tinha a tal percepção extrasensorial? Era como um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Era preciso ir mais fundo. Afinal um arrepio na espinha não era argumento para tribunal algum”.

Afora isso, nos momentos de divagação e raciocínio da personagem principal nota-se uma constante preocupação com a memória urbana da cidade. Não é à toa que o romance se passa na capital do maior estado do país. E, ao contrário do que se possa imaginar, não há referência apenas aos problemas da cidade, como engarrafamentos, violência e poluição. A perspicácia do detetive mostra ao a cidade sob outro ângulo de visão: “(...) [Alyrio] ficou na dúvida se seguia em direção ao centro e tomava café no shopping ou se ia na direção da Paulista. (...) Passou pela igreja da paróquia do Divino Espírito Santo que já começava suas atividades com as crianças. Algumas vezes ele entrava na igreja. Mas, naquela manhã, limitou-se à lembrança das vezes em que entrara quando a igreja estava vazia. Gostava da calma, os vitrais refletindo uma luz sensata, a quietude que trazia uma ligação com algo acima das lides diárias.”

Nesse sentido, o livro surpreende não tanto pelo seu enredo ou pelo seu desfecho, com a descoberta do verdadeiro assassino. Afinal, como está na própria epígrafe, “não há nada de novo sob o sol”. Por outro lado, Vera Carvalho Assumpção nos mostra que não se deve fechar os olhos para as paisagens noturnas que estão ao nosso redor.

Sobre o Autor

Fabio Silvestre Cardoso: Colunista da Revista Cultural DIGESTIVO CULTURAL

 

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