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RESENHAS

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Um livro para a Memória Subornada

Jorge Pieiro*

'Somos o que não temos.
O que temos, já perdemos de ser.
(Carpinejar)


Uma maneira de resgatar o passado é fundi-lo ao presente. Essa idéia poderia ser admitida como verdade, não fossem impróprias as condições do nosso pensamento em relação à vida que se esgarça. A memória é mesmo um tecido suave.

Filosofando, Henri Bergson, no início do século XX, distinguiu dois tipos de memória: a memória-hábito, que repete e torna presente o efeito prático de experiências passadas; e a memória-recordação, que reproduz o passado enquanto passado, revivendo-o. Por sua vez, o crítico literário Ivo Armstrong Richards, ainda na década de 20, atestou que a memória 'é uma aparente revivificação da experiência passada, à qual se deve a riqueza e a complexidade da experiência'. Bella Jozef, 70 anos depois, emitiu uma idéia contrastante, quando concluiu que 'para poder lembrar-se, é preciso haver esquecido. Lembrar-se não quer dizer apenas recopiar um acontecimento do passado mas revivê-lo de novo, regenerá-lo e concebê-lo no sentido biológico como se concebe uma idéia'.

O que pensar disso, quando lemos, ainda às primeiras luzes do século XXI, afirmações extraídas de um futuro, mais precisamente do ano de 2045, como por exemplos, que 'A mãe não se lembrava / do seu esquecimento'; ou 'Lembro do que não vivi / o suficiente para esquecer'? O que fazer com essa memória do esquecimento, que afirma serem os antepassados seres não concluídos, que 'O fruto retorna ao caroço, / reiniciando o sumo das ruínas'? Talvez a conclusão seja a de que 'Estamos atolados com o que não existe', ou que não nasceremos de novo, 'a morte é que se renova'.

Esse universo de nuanças, expectativas e cadafalsos fazem parte do sexto livro do poeta e jornalista gaúcho Carpinejar - Fabrício Carpi Nejar (1972) - sob o título Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004), que se apresenta como um longo poema de versos curtos, continuação de sua obra anterior Biografia de uma árvore (Escrituras, 2002), mas que pode ser lido individualmente.

Apesar de classificado como poema(s), Cinco Marias é uma espécie de diário, escrito pelas marias - mãe e filhas - que se misturam em vozes, não deixando muitas pistas para uma revelação mais contundente. Essas vozes femininas reproduzem falas esquizóides, mas que traduzem em espécie de refrão toda uma angústia e uma verdade: 'Os homens nunca vão entender'. No entanto, esse poema-diário é também uma forma encontrada pelo poeta para criar a obra dentro da obra, para inverter a dimensão do tempo. O gênero poesia é uma formulação apenas didática, mesmo que à primeira mirada se enxerguem versos. Em se tratando de Carpinejar, mais uma vez, a construção de versos - que sejam! - dá-se pela construção de uma memória voltada para o futuro. O passado é hoje, e basta.


O autor de Caixa de sapatos (Companhia das Letras, 2003) mais uma vez surpreende. Fala de morte e de vida, de livros e pedras, de ritos e perdas, de impurezas e emoções, de traição e amor, enfim, de pequenas doses de estranhamento e de desassossego. Há duas revelações - dois poemas? dois aforismos? -, entre tantas, que levam o leitor a sentir figuradas vertigens: 'Lentamente, / tornei-me pai, / irmã, prima / uma família inteira, / a escutar o fardo / de conviver / com a filha / que eu era'; e 'Há mães que transformam / seu ventre em túmulo / e não empurram a criança / para fora'.

Cinco marias é um livro de grandes metáforas, ausências muitas vezes sentidas na poesia de nosso tempo. As mulheres, como as pedras da brincadeira infantil, enclausuram-se dentro da concha da mão, dentro da própria existência, como a invalidarem suas vidas. Ao se fecharem dentro de casa, após um delirante enterro de livros de uma biblioteca - deixemos a verdade para o leitor -, uma delas escreve: 'Em nossa grade, / um epitáfio: / Cuidado com o cão'. Dessa veia simples e poderosa se alimenta a poesia de Carpinejar. Nela, relances episódicos, suturas quase impossíveis, rugas existenciais. Coleções de ser o que não se é, verdades que ficam para depois, pedras amarradas aos pés das soluções, para que nunca emerjam.

Cinco Marias é um livro que suborna a memória do leitor, deixando-nos perdidos em nosso ter sido. Mas também é uma obra que devemos ler sem proteção, sem armaduras, sem o sentimento de culpa 'por aquilo que não foi vivido'. É, ainda, um poema que não pode ser lido com as adagas do (des)entendimento crítico. É um livro que deve ficar vivo em nossa mente, sendo remoído, para desencadear uma avalanche de emoções estéticas. A obra nos quer vivos, como ela mesma se quer. Só assim, a memória, mesmo subornada, continuará sendo um tecido suave. Que as nossas lembranças, pois, sejam longas no esgarçamento desses esquecimentos!

Sobre o Autor

Jorge Pieiro: Jorge Pieiro é escritor e professor de literatura. Auto de várias obras:
• Caos Portátil (contos). Fortaleza: Letra & Música, 1999.
• Galeria de Murmúrios (ensaio). Fortaleza: [s/n], 1995. (Cadernos de Panaplo).
• Neverness (poema). Fortaleza: Resto do Mundo/Letra & Música, 1996.
• O Tange/dor (poemas). Fortaleza: [s/n], 1991.
• Fragmentos de Panaplo (contos breves). Fortaleza: [s/n], 1989.
• Ofícios de Desdita (ficção). Fortaleza: IOCE, 1987.

 

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