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A DESCOBERTA DO AMOR

por Miguel Sanches Neto *
publicado em 28/11/2005.

O amor um dia ganha cabelos brancos, que ela tenta disfarçar com tinturas que sempre serão uma paródia. Mas ele rejeita esta outra beleza, que da beleza original guarda apenas uma triste legenda. Onde a maciez da cabeleira adolescente, quando ele a conheceu? Onde o brilho dos fios castanhos, que agora ficaram foscos sob a tinta que esconde as raízes brancas? Ele percebe que o vento não brinca mais na cabeleira de seu amor, o vento apenas desmancha seu penteado, dando-lhe uma feição desvairada.

Ele nunca imaginou que o amor poderia tingir cabelos, nem mesmo esperou vê-los tão ressecados, apesar dos gastos com creme, xampu e tonificante. O amor também está descolorido, mesmo quando eles tentam mentir um frescor que talvez não seja mais possível.

As mãos meigas do amor se despediram dela para sempre. E surgiram essas outras, com dedos longos, veias e músculos aparentes, a pele afinou tanto que mais parece plástico e as unhas cresceram de forma assustadora. Segurando outrora aquelas mãos mais que amadas, ele sussurrava que elas eram fonte de suas madrugas. Agora, ele fita as substitutas, dizendo:

– Começamos a morrer pelas mãos.

Ela sabe o quanto isso é verdade e se cala, controla os gestos e esconde as garras mortuárias.

Sozinhos pela casa, eles se distanciam. Ela se distrai arrumando coisas, como quem prepara uma viagem sempre adiada. Ele enraíza-se em alguma poltrona, sem vontade de mais nada. Na mesa de canto, a foto do amor aos vinte anos, rindo dos dois velhos que quase não se falam.

– É preciso tirar todas essas fotos, quero me livrar dos fantasmas – ele diz.

Ela recolhe a uma caixa todas os retratos, dos filhos que partiram, dos parentes perdidos na memória e deles próprios, mais distantes do que quaisquer outros.

E ele ainda olha para os lugares onde durante anos ficaram as imagens do amor imorredouro e suspira de saudades.

Mesmo quando já não é, o amor está, ocupa todos os espaços, os reais e os imaginários. É a neblina nos olhos fracos. É o cansaço dos corpos lerdos. A solidão de cada madrugada. A pontada no peito. A dor de cabeça. A fisgada insuportável na coluna. A falta de apetite. A tontura.

O amor é o que dói.

O rosto do amor tem uma cara caída. A carne se desprende do osso, a pele carece de força para fixar-se. Ele olha no rosto um nariz imenso, cada dia maior, reinando assimetricamente. Um fio de pêlo escuro e grosso nasceu da pinta preta da face esquerda, e ele, menino assustado, passa a temer estes sinais. E estuda o crescimento do pêlo, como se suas vidas fossem sendo medidas por ele.

O amor tem um cheiro de armário, de coisas longamente esquecidas em gavetas e cabides, de livro embolorado e de porão úmido. Quando, num pequeno acidente doméstico, os dois rostos se tocam, ele sente a camada de maquiagem esfarelando-se contra sua barba, como se tocasse uma estátua de areia, pronta para esboroar-se.

Para ela, o amor ganhou cheiro de tabaco ordinário, um fundo musical de pigarros, cada vem mais encatarrados. O amor que antes era palavras sibilantes viu-se transformado em ruídos desagradáveis, como, por exemplo, o dos sonoros flatos, sempre nos momentos mais inapropriados.

Ela se recorda de quando ele chegou com flores e um pote de sorvete, para comemorar o primeiro mês de casamento. Apesar do brilho – hoje raro – nos olhos dela, ele se vira na cama e faz soar sua tripa gaiteira. Ouve-se a trombeta do anjo vingador.

O amor para ela é o cheiro de cerveja, coisa fermentada. E quando ele se aproxima, ela sente o mesmo medo que, na sua infância, tinha dos velhos bêbados.

O amor tem calças amarrotadas e olhos de fogo, uma mão ossuda e uma barba espinhenta, ouriçada. O amor tem calos nos pés, unhas endurecidas e mal cortadas. Ele cada vez mais parecido com um primitivo. Já não diz quase nada, apenas resmungando pela casa, réplica do avô avoado que começou a disparar impropérios e virou o louco do bairro. Por que o amor havia modificado tanto? Onde as palavras meigas, as carícias contínuas, o mel vertido em sua língua?

O amor envelhece, despedindo a paixão. O amor dorme vendo televisão. O amor pisa os canteiros de flor. O amor grita diante da menor contrariedade. O amor acorda cedo e dorme tarde. O amor vira só caridade.

Mas súbito surge uma urgência que nada pode deter. Nem o corpo do outro nem o próprio corpo, nem a hora imprópria nem o senso de ridículo, nem a consciência da morte nem mesmo a dor de ouvido. Há uma hora em que entre o corpo de agora e o de outrora desfaz-se a distância, em que a pele caída e sem cheiro não é repugnante, em que os seios flácidos ganham novo encanto, em que as pernas finas dele fazem-se potentes mastros, em que as mãos se buscam não como apoio, mas como perigo. Neste instante, a lua clareia mais que o sol, o amor é ontem e hoje, manhã e noite, sombra e luz, dor e gozo, alegria e desespero.

Eles então se beijam, e o gosto do beijo volta a ser mesmo daquele tempo em que era possível dizer "eu te amo".

E é dizendo "eu te amo" que eles se despem, não como quem se exibe, mas como quem enfim descobre que o corpo não é a razão do amor, serve apenas como passagem.

Passagem para onde?

É isso que eles ainda tentam descobrir.


Fonte: Gazeta do Povo, 19 de novembro de 2005.


Sobre o Autor

Miguel Sanches Neto: Escritor paranaense e crítico literário, assinando coluna semanal no maior diário do Paraná, a Gazeta Povo (Curitiba), tendo publicado só neste jornal mais de 350 artigos sobre literatura, fora as contribuições para outros veículos, como República e Bravo!, O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde (São Paulo) e Poesia Sempre e Jornal do Brasil (Rio de Janeiro).

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