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Paródias sombrias e pedagogias do terror

por Chico Lopes *
publicado em 14/06/2004.

Brian De Palma é geralmente considerado o mais talentoso imitador de Hitchcock na América ou o foi, até uma certa altura de sua carreira. Quando vi pela primeira vez o seu Vestida para matar, ainda no cine Bandeirantes de Novo Horizonte, fiquei irritado com o plágio descarado de Psicose. Depois vi A fúria e achei que havia sangue em excesso. Naqueles princípios dos anos 80, ironicamente, eu travava um contato desdenhoso com diretores como ele e Cronenberg que, depois, entenderia melhor e saberia valorizar (também, a qualidade do cinema caiu tanto que não nos restou muita alternativa senão ficar com os diretores com uma certa marca pessoal mais pronunciada e a capacidade de, mesmo espasmodicamente, fazer algumas coisas qualitativas).

François Truffaut foi preciso ao dizer que os imitadores de Hitchcock podiam aproveitar suas técnicas, truques, macetes, isto é – podiam apropriar-se de suas formas, seus estilemas – mas nunca saberiam imitar o seu segredo: a profunda emotividade. De Palma era abusado: procurava apropriar-se de tudo. Usava um compositor, Pino Donaggio, que corria atrás de Bernard Herrmann, o compositor das melhores trilhas dos filmes de Hitchcock, com talento não igual, mas, em todo caso, nada desprezível; se apropriava das idéias de Hitch como se fossem uma gramática cinematográfica à disposição de todos, ampliando-as, dilatando-as, até insuspeitáveis limites; com uma câmera maliciosa, fluente, indiscreta, eloqüente, subordinava a forma geral de seus filmes a uma idéia bem amarrada, não permitindo vazios de interesse – as “manchas de tédio” de que Hitchcock dizia ser preciso fugir – no desenvolvimento da trama. Aprendeu direito as lições do Mestre e, de tão aplicado, conseguiu, de algum modo, revitalizar algumas das idéias que o animavam.

Mas, De Palma tornou-se uma espécie de símbolo da chamada Pós-Modernidade do cinema dos anos 80, representando a tendência, endêmica na década, de preferir a reciclagem dos modelos cinematográficos bem sucedidos em cada gênero, como se essa arte, na verdade, não pudesse oferecer mais nada e só se pudesse então praticá-la em homenagens ou paródias retroativas, em citações, tornando os filmes mosaicos de idéias já consagradas por um passado – supostamente – de ouro. Criou-se um fetiche do passado, na verdade, funcional, dentro de certos limites, mas, em geral, complacente e um tanto cego para a evidência de que a indústria sempre produziu coisas boas e más.

Cada um de seus filmes parecia um compêndio de certas obras de Hitchcock. Nem vale lembrar Vestida para matar, porque é quase uma brincadeira em cima do roteiro de Janet Leigh, com uma parte inicial que é um prodígio de cinema – a enorme seqüência quase muda em que Angie Dickinson, Janet Leigh dos anos 80, segue para a morte depois de ir dormir com um estranho que conhece no Moma de New York e que – descobre, aterrada - tem uma doença venérea. É a primeira metade de Psicose que se refaz, e a segunda, naturalmente, trará as revelações, incluindo a leitura psicanalítica-gororoba-de-revista-pseudo-científica, a ameaça de morte no banheiro e travestismo. Curiosamente, apesar da vulgaridade, essa primeira parte é tão bem realizada que sugere que De Palma poderia ser até melhor que Hitchcock: ele tem um domínio operístico do suspense, e sabe mesclar o humor e o desespero em doses elevadas. Só não sabe – e isso é notório – pôr falas nas bocas dos personagens. Eles não sugerem pessoas, mas estereótipos, e, por isso, depende de bons atores para viabilizar seus artifícios suspeitos – exemplos de que os atores lhe são essenciais: Sissy Spacek em Carrie, Michael Caine em Vestida para matar. Como abusa de um tom hiperbólico, às vezes fica irremediavelmente chato, maneirista e charlatão.

Em Carrie, a estranha, entra-se claramente nos domínios de Psicose, pela música de Pino Donaggio, que imita a de Herrmann, mas também em Marnie, pelo choque da descoberta do sangue menstrual, que, de algum modo, remete à cena em que a ladra apavora-se com um pingo de tinta vermelha na sua blusa virginalmente branca. Em A fúria, um carrossel descontrolado e “furioso” remetia à cena apoteótica da luta entre Bruno e Guy no parque de diversões de Metcalf em Pacto sinistro. No seu Vertigo dos anos 80, Dublê de corpo, há uma mistura desse filme, de Janela indiscreta, de Psicose: um ator de filmes B, claustrofóbico, não consegue rodar um filme de vampiros por não agüentar ficar no caixão de defunto de que tem que sair com os caninos à mostra. Vai morar, por favor de um desconhecido, num apartamento espetacular, com vista para Los Angeles, dotado de um potente telescópio com o qual pode “voyeurizar” uma atraente vizinha que lhe faz um número de strip-tease da janela de um apartamento da frente. Apaixona-se pela mulher, mas descobre que ela está sendo seguida e ameaçada por um homem desconhecido. Na conclusão da trama, descobre-se um dilema idêntico ao de Vertigo, mas Gregg Henry, ator apenas competente e limitado, naturalmente nem de longe sugere James Stewart. O êmulo de Galvin Elster não é um ator memorável, a atriz que faz as vezes de Kim Novak é bonita, mas não oferece mais que uma figura desejável à distância.

De Palma brinca muito com as ironias da representação cinematográfica – logo de cara, no desfilar dos créditos de abertura, somos apresentados a um cenário de faroeste e pensamos estar entrando no filme, mas, daí a pouco, vê-se que é cenário mesmo, um telão que trabalhadores do estúdio, de onde o ator claustrofóbico foi demitido, estão carregando. Isso já coloca a história toda sob suspeita. De Palma acredita que a manipulação explícita e brincalhona tem encanto para o público, mas isso por vezes instala uma espécie de descrença que pode fazer com que esse se canse e desaponte. Não precisamos que nenhum diretor nos diga continuamente que um filme é um filme – estamos mais que fartos de saber disso, e queremos evasão verossímil, ainda que conscientes de que se trata de tapeação. Quando o filme é bem feito, essas coisas parecem, de fato, encantadoras. Mas, nos medianos ou ruins, podem parecer afetações exaustivas, e, finalmente, inaceitáveis.

A Los Angeles cínica e feérica dos anos 80 que Dublê de corpo mostra nos faz ver que De Palma está bem longe de Hitchcock – com a amoralidade generalizada, não há nem remotamente uma moral católica a que atar os personagens, ainda que para fazer humor e colocar o dedo em feridas freudianas. É bem mais sombrio, porque nada mais resta, e quem acreditar em alguma coisa, acabará como otário ou louco. Na atmosfera de Um corpo que cai, romântica, necrófila e refinada, em nenhum momento pensamos que Judy Barton, que evidentemente é uma garota de programa, mereça ser chamada de puta. Com De Palma, nem se cogita dessas delicadezas – ele trabalha com tipificações bem grosseiras. Pode imprimir uma forma requintada a seus pesadelos, mas a brutalidade que há neles não é de modo algum redimida pela indignação moral ou coisa semelhante – ao contrário, o cinismo acentuado só se acentua e não somos poupados de nada: fica-nos apenas o consolo de estarmos vendo uma coisa tão “over” que, claro, trata-se de Cinema, mas não se pode refugiar em mais nada. De olho numa Hollywood cujas regras são a de sempre – ou seja, o sucesso, seja lá como for, e isso ficando mais violentamente indisfarçável a cada época -, manda-nos para o açougue e capricha nas hemorragias. Hitchcock, ao fazer o assassinato de Janet Leigh no banheiro de Psicose, pensava que mostrá-lo a cores seria de mau-gosto. Essa é uma diferença entre os dois diretores, e não é nada pequena.

Com todas as suas vulgaridades, o cinema de De Palma tem a sua fascinação. Talvez porque se sinta seu prazer em filmar, sua volúpia em montar seqüências em que a ação é coreografada espetacularmente e nada importa senão o prazer de olhar, de seguir uma câmera que vai nos presentear com essa onisciência que é tão querida pelo espectador. Apaixonado pela vizinha, querendo a um só tempo admirá-la, possuí-la e adverti-la de que é seguida por um sujeito desconhecido e perigoso, Jake Scully sai pela cidade, e o filme entra numa dessas seqüências em que, com o ritmo dolente, sensual ou paroxísmico da música de Pino Donaggio, vamos seguir um personagem que segue outro, como em Vestida para matar, como em Um corpo que cai, quando Stewart gira pelas ruas de San Francisco atrás de cada movimento de Kim Novak. Num shopping-center à beira-mar, ele a entrevê despindo-se, se apossa de sua calcinha, e, por vezes, a seqüência se tinge de um virtuosismo mudo incrível, incluindo o perseguidor da mulher, que quer se aproximar dela para outros fins. O trio se espalha, simétrico e ágil, mas com a imprevisibilidade sendo levada em conta, cada qual em seu papel, pela tela. É um prazer e tanto simplesmente entregar-se a essa cena demorada – ela nos dá uma série de satisfações específicas do bom cinema e nada nos pede senão olhar. O prazer que De Palma sente com o “fake” - em se tratando de uma demonstração de sua capacidade artesanal, de seu esteticismo, mais que de seu refinamento emotivo - pode, aí, ser compartilhado. Perdoa-se muito de suas chatices por causa dessas fulgurações.

A diferença entre Um corpo que cai e Dublê de corpo é bem grande. O primeiro é uma meditação grave e lírica, contida (apesar do “pathos” evidente), sobre o Amor e a Morte. Obra de um homem perverso sim, mas obra de um refinado, distinto “gentleman” britânico com uma história de Cinema desde o mudo nos anos 20. O segundo deixa-nos no limite do anedótico, apesar de sua atmosfera soturna, repleta de anomia, sugerindo uma deterioração moral tão completa que mal adeja pelas consciências alguma coisa que vá além de um epifenômeno do instinto primário de auto-preservação – não se acredita muito nas boas intenções do herói, que não é herói, mas pobre-diabo cheio de desejos e de bolso vazio, ansioso por um mundo barato do qual está excluído, temporariamente. A manipulação consciente e cínica dos meios cinematográficos, que Brian De Palma pratica, não parece esconder nenhuma intenção de denúncia. Por vezes, acha-se que ele é um sádico sem maiores justificativas – como na cena do assassinato pela broca elétrica. Aí, não parece haver nada além do desejo de encenar espetacularmente uma morte. Algum crítico poderia achar que a broca é um sucedâneo do falo de Jake Scully, desejoso de penetrar a vizinha muito bonita – que o vilão concretiza as “más intenções” do mocinho “voyeur”, mas seria estúpido, seria desculpar um diretor que não parece ter escrúpulos com ser um comerciante.

Dublê de corpo é menos uma história, um drama humano, que uma série de truques talentosamente exibidos, meta-cinema meio exaurido em si mesmo, filme que não esconde sua condição de artifício nem se preocupa em escapar a ser um vácuo ornamentado com brilhantes maneirismos. É divertido, exasperante e bom de se ver, mas não causa o efeito profundo e prolongado de Um corpo que cai.

No filme de Hitchcock, o Cinema parece via possível para a discussão de questões transcendentais. Em Dublê de corpo, estamos no terreno do maneirismo, encantamo-nos com a precisão, a habilidade, a persuasão da câmera, mas a emoção nunca avança para além daquilo que se destina a um entretenimento frívolo inteligentemente produzido.

Os órfãos e o Bicho-Papão

Os anos 80 usaram e abusaram de um tipo de filme de terror que apelava já não mais para a sugestão, a imaginação, a inteligência, mas para o sado-masoquismo mais rasteiro, usando o susto covarde e desleal, a morte violenta em suas formas mais atrozes, mais disparatadas; teve-se a impressão – que o passar do tempo só confirmou – que o público se tornou uma horda de dementes com um QI de passarinho e uma fúria homicida e auto-punitiva sem limites.

Pode-se resumir: o Alex, aquele herói repulsivo de Kubrick em Laranja mecânica, vai ao cinema. E leva os amigos. E trilhões de novos Alex e seus amigos vão surgindo, como formigas negras, algumas larvais, nas portas das casas de exibição, naturalmente, com vontade de depredá-las.

O que é que isso se tornou, para a indústria? Gastos não muito altos, acima de tudo – com um elenco adolescente, em geral péssimo e desconhecido, um enredo mínimo, um diretor-guia-de-tráfego-em-estúdio-ou-locação, podia se ter um sucesso bem lucrativo. Deixa-se de lado a preocupação com qualquer lógica, mesmo a do absurdo – pois é claro que os filmes de terror têm que se situar além da verossimilhança, como obras de imaginação, mas uma obra de delírio nem por isso pode fugir ao menos à coerência de seu postulado; é necessário ter método na alucinação, ou o que se tem é bagaço.

Isso começou com O bebê de Rosemary, O exorcista e Carrie, a estranha nos anos 70, mas, lá para trás, os sustos e o baixo orçamento do Psicose de Hitchcock dariam início a um filão que já se previa sanguinolento e barato (só que não chegava aos extremos que se viu). Polanski, Friedkin e De Palma poderiam ser considerados, ainda que com restrições, artistas. Que dizer dos novos diretores, cujos nomes mal a gente mal se lembra e nem vai se dar ao trabalho de procurar saber?

No mundo de Halloween, Sexta-feira 13 e A hora do pesadelo, entra-se numa espécie de pesadelo em que tudo parece autorizado, mas a premissa é a mais conservadora possível: prega-se a unidade da família, a segurança doméstica, o conformismo mais conformado como escudos contra as ameaças tenebrosas do Mundo. Jovenzinhos tontos, dados a brincadeiras de mau-gosto, a sexo livre e drogas, vão acampar, e são mortos das maneiras mais Grand Guignol num acampamento onde surge o psicopata-símbolo desse cinema: Jason Vorhess, imortal. Parece encarnar uma advertência de pai ou mãe careta: cuidado com a permissividade que o Bicho-Papão está solto. Na verdade, está, mais que solto, autorizado a punir violenta e espalhafatosamente em nome dos zelosos pais e seus valores rígidos e ameaçados. A família americana, nesses filmes, aparece como uma espécie de senhora puritana que enlouqueceu (talvez aquela mãe fantástica, com tanto horror à menstruação, encarnada por Piper Laurie, em Carrie, a estranha).

Se não há valores morais que agüentem a pressão do cinismo engolfador da sociedade de consumo mais rica do mundo, deve-se recorrer às mais imbecis e grotescas formas de superstição para que a família e sua unidade internamente minada pelos sonhos competitivos e as neuroses bravas fique em pé. Tem-se então a pedagogia do terror: os adultos, sejam professores, policiais, pais, pastores, detetives, estão incumbidos de restaurar a ordem ameaçada pelo Sobrenatural, e pregam a obediência, a cautela, a desconfiança xenofóbica a estranhos, estrangeiros, negros, punks, gays, portorriquenhos, e, por fim, marcianos ou o que mais a paranóia engendrar.

O Mundo é um lugar perigoso para quem não ouve Papai e Mamãe, castigos pavorosos esperam os que vão andar fora dos trilhos; só vale se você for bonzinho, se recorra ao fascismo, à autoridade como valor supremo em si mesmo, à violência com fins moralmente saneadores.

O vampiro e seu companheiro no divertido A hora do espanto (o primeiro) são vizinhos esquisitos, homossexuais, o que fica evidenciado pela maliciosa inclusão da canção “entendida” Strangers in the night. Fatores exogâmicos são sempre perturbadores – só se está bem dentro de casa, e nem aí, pois em Poltergeist o aparelho de tevê é a via de entrada para os espíritos do Mal. Há uma infinidade de filmes dentro desse espectro, a maioria de uma ruindade quase inacreditável, mas sociologicamente reveladores. Já se reciclou de tudo: vampiro, lobisomem, duende, alienígena, bruxa, morto-vivo. Na verdade, é o de sempre, mas o medo do espectador é o de sempre também, conservador, primitivo e nada disposto a esclarecer-se. A reciclagem parece até uma espécie de reflexo comercial de um mecanismo psicológico obtuso e repetitivo, uma cegueira que quer continuar cega. E culpar o seminal Psicose por isso é bobagem, visto que Hitchcock deu ao Norman Bates vivido por Anthony Perkins toques de ironia e paródia que refletiam bem o que pensava do filme e do público – é melhor crer, como admirador do cineasta, que jamais teria aceitado, mesmo comerciante como era, a hipótese de tornar aquilo uma franquia, com direito a infindáveis seqüências.

Desde Carrie, a estranha, os livros de Stephen King viraram o filão mais óbvio. São livros fáceis de ler, intoxicantes, e, durante algum tempo, foram para mim um vício, confesso, tal como a velha pulp fiction policial e de mistério de que gostei quando bem jovem. O problema é que King, um homem de imaginação, é também um comerciante deslavado, e suas fantasias se esgotam. Mas é um best-seller numa cultura global que absolve tudo que cheire a sucesso e os filmes que saem de seus livros, capengando aqui, acertando ali, na bilheteria, já podem ser vistos como símbolos de uma época do cinema comercial de terror.

Veio daí O iluminado (The shining), de Stanley Kubrick, produzido em 1980, um filme que partiu de um de seus livros. É curioso saber que a adaptação não o agradou – bem, mas é óbvio, pelo que se viu na tela, que se tratava mais de um filme de Kubrick que de King, repetindo a verdade de que os filmes podem ter vida própria, usando os livros que eventualmente adaptam apenas como ponto de partida para as fantasias de um cineasta – o que, sem dúvida, fere a vaidade dos escritores, que têm lá suas idéias sobre o que deve ser feito cinematograficamente com seus escritos. Pode-se resumir isso dizendo que Kubrick, se escrevesse, seria um escritor muitíssimo superior a Stephen King.

O filme é um pouco contraditório, como se fosse uma coisa grandiosa erguida sobre um argumento barato, o que lhe dá uma desproporção esquisita. Mas, dificilmente se esquece aquela abertura quando, subindo pelas curvas das montanhas do Colorado, um carrinho se perde à distância, sumindo e voltando aos olhos do espectador – que realiza um dos deleites básicos do cinema: a onisciência de uma viagem - debaixo de uma música que, opressiva e sugestiva como aquela, poucas há. As montanhas, com sua beleza imponente, praticamente tragam esse humano artefato que deve fazer face, como um cisco, à inumanidade ilimitada e vencedora do Natural.

Ninguém pode negar que o estilo de Kubrick esteja inteiro no filme todo, especialmente no seu gosto pela composição rígida, pela atmosfera, pela grandeza do “décor”, plenamente satisfeita nos interiores do hotel Overlook e no labirinto do jardim, onde acontecerá uma das melhores cenas. Ninguém poderá negar, tampouco, que as apelações “sobrenaturais” de King enfraquecem a trama – o menino, com suas premonições, seus dons paranormais, tem uma relação especialmente piegas com um cozinheiro negro, com quem troca “energias”, e, na aflição, mandará mensagens à distância para ele, que voltará para tentar salvá-lo.

Kubrick tirou, da massa de fantasmagorias que havia no livro original, bem poucas, apenas as que serviam à exposição de algumas idéias caras a seu cinema, ficando com o enlouquecimento do zelador contratado, contrastando as imensidões de horror, gelo e desespero com a fragilidade da mulher e do filhinho solitário. O próprio chique do hotel acaba por ser um incômodo mais terrível que qualquer outro – amplos salões, corredores que parecem nunca acabar, uma cozinha hiperbólica. Kubrick não os povoou de tantos fantasmas quantos havia no livro – procurou ser sugestivo, à sua maneira grandemente enfática, esbarrando na contradição principal: não há como ser apenas sugestivo com King, cujos livros, nada sutis, parecem realizar as paranóias de algum adolescente louco.

Há uma solidão sem limites no filme, que nem precisa de diálogos para mostrá-la – aliás, dispensa-os, visto que Kubrick é gênio visual. Essa solidão é simbolizada principalmente pelos passeios de velocípede do menino pelos corredores. Com um pai que progressivamente enlouquecerá e se tornará um assassino e uma mãe fragilizada e meio histérica que não sabe o que fazer, ele é uma figurinha comovente. É o melhor do filme, na verdade, porque as caretas de Jack Nicholson são excessivas, Shelley Duvall como a mãe não é lá muito convincente e o filme acaba por parecer, de certo modo, mais um projeto de grande filme que um grande filme realizado. Deixa perguntas demais no ar, e parece não ter conseguido resolver muito bem o impasse entre o lixo subliterato de King e o refinamento cerebral de Kubrick. Ainda assim, lega algumas imagens muito expressivas à memória do espectador.

Esse menino “iluminado”, com sua orfandade de pai (porque aquilo que está lá, tomando conta do hotel, se transformará apenas numa coleção de esgares e numa máquina de matar), é talvez um exemplo. Os filmes americanos de terror trazem, com singular freqüência, filhos aturdidos de matriarcas loucas e de pais alheios ou assassinos. Os órfãos saem em busca de pais-substitutos, que podem ser o líder de uma gang, um mestre de alguma vertente exótica de ocultismo, um velho bondoso que esconda segredos esquisitos, alguém de fora de casa, em suma. Mas, fora de casa, o mundo é traiçoeiro, e isso é invariável.

Outro bom filme dos anos 80 é A morte pede carona (The hitcher), de Robert Harmon, produção de 1986 que tem um toque hitchcockiano na essência, lembrando Pacto sinistro: um jovem inocente, na estrada, dá carona a um parapsicopata que vai cometendo crimes odientos ao longo do caminho, procurando incriminá-lo, envolvê-lo, num comportamento misterioso que, pela ânsia de partilha no que é furtivo, sugere uma tortuosa homossexualidade. Quando vai dar carona ao Perigo, o jovem (C.Thomas Howell, com uma fragilidade apropriada) ao volante diz: “Mamãe me aconselhou a não dar carona a estranhos...”. O filme provará que deveria ter ouvido o conselho.

É o adolescente incauto a se meter numa encrenca sem tamanho outra vez. É um “road movie” – com boa trilha sonora de Mark Isham, atravessa-se a América das desolações asfaltadas, lanchonetes e motéis de beira de estrada, essa mesma onde uma vez Marion Crane foi se hospedar no Bates Motel. O personagem de C.Thomas Howell deparou-se com um vulto indefinido debaixo da chuva diante de seus vidros bem quando começava a dormir – donde o filme sugerir uma espécie de sonho. Mas, ficará, a partir da entrada do homem (Rutger Hauer, muito bom) em seu carro, bem acordado, porque o tipo solicitará dele toda a astúcia e a selvageria de que dispuser para que continue vivo.

É muito simples: o Bem contra o Mal; torcemos pelo Bem, naturalmente, e esse tipo de situação esquemática – o jovem bom contra o superpsicopata ardiloso dotado de poderes imprevisíveis, como aquele tipo de longevidade que faz esperar o susto mesmo depois que estiver morto e bem morto, no chão – acabou por ficar tão disseminada que os filmes foram virando uma rotina de brincadeira e de tédio, mesmo quando as ameaças pudessem ser renovadas das maneiras mais fantasiosas, arbitrárias e dotadas de efeitos fantásticos. Basicamente, foram virando um rito. Mas, o que é que se exorciza? Perigos que não morrem, que não podem morrer, ou não haverá filmes para se ver na semana seguinte.

Gosto de “road movies” e de filmes de suspense – portanto, achei bom ver e rever “A morte pede carona”. Filmes como esse atraem sempre por aspectos aparentemente secundários bem manipulados: confesso que, como espectador e homem sedentário, não resisto à compensação de apreciar filmes que, ainda que com roteiros horrendos e atores péssimos, vou esquecer por dever de inteligência já à saída do cinema, me deram a satisfação de viajar por lugares, estradas, paisagens que nunca poderei ver de perto; tive a sensação de ter sido colocado comodamente num carro com chofer e me deleitado em mundos distantes sem perigo real para a minha pele ou para meus preconceitos.

De qualquer modo, a falta de qualidade crescente, os abusos dos clichês, o gosto pela rotina, pelo “fast food” de violência simbólica das formas mais disparatadas, são muito inquietantes. Ainda que, pelo meio disso, possam surgir filmes capazes de fazer pensar e sentir outras coisas, isso acontece tão raramente e os diretores tão rapidamente são convidados a ingressarem no “mainstream” com propostas em dólares que não poderão recusar, que o Cinema vai se tornando bem menos atraente como entretenimento – as ofensas contínuas a um mínimo de refinamento emocional e intelectual acabam por afastar os melhores espectadores. Ademais, a cultura do sucesso tende a absolver qualquer coisa que dê lucro e atraia massas imensas e é particularmente covarde e chantagista; diz aos incomodados que simplesmente se acomodem ou se retirem e, em geral, quem tem pouca gente ou ninguém ao seu lado, ainda que tenha razão, acaba por ir cedendo a uma certa complacência melancólica, dando de ombros, ficando cínico ou entorpecido também.

A “barbárie” tem quase tudo a seu favor e se reforça tranqüilamente, sofisticando apenas as geringonças tecnológicas, o aparato, o “merchandising”. É cada vez mais o shopping-center, o computador e o raio laser para botocudos satisfeitos e ululantes.

(publicado originalmente no VERBO 21)

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
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