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A República de Ascânio

por Airo Zamoner *
publicado em 25/02/2004.

Um dia, ele tomou a decisão final. Nem se importou com o domingo pachorrento, muito menos com os amarfanhados jornais que derramaram notícias pelos cômodos indiferentes.

A calada costumeira daquelas tardes silenciosas, avançava sossegada pela rua e adentrava pelo bairro. Mas ele a interrompeu, quebrou, violentou.

– Chega! – berrou intempestivo.

A família, sincronizada, voltou-se para ele. Arregalou os olhos. Paralisou-se. Esperou explicações.

– Chega! – repetiu com ímpeto heróico enquanto amarrotava e rasgava com os dentes os restos de jornais.

– Chega, chega, chega!

Provocou olhares desconfiados, medos escondidos de avizinhar-se uma loucura insana. Tereza jogou-se contra ele, abraçando-o na tentativa de paralisá-lo. Os filhos repetiram o gesto, criando um bloqueio circular, interrompendo a histeria nascente.

Jogou-se exausto na poltrona esfiapada. As notícias foram recolhidas dos cantos, inteiras e despedaçadas, babadas e mordidas, hipócritas e mentirosas, dramáticas e trágicas, falsas e sarcásticas, malandras e corrompidas.

O grande saco azul-desbotado de ascendência reciclada, gordo, à beira de explodir, foi amarrado e arrastado para a entrada do sobrado.

Letras teimosas de todas as fontes escorriam pelas bordas meladas, livrando-se da cadeia sem habeas-corpus, mas sujando as mãos de Tereza. Outras, mais bem aprisionadas, debatiam-se em delírio à beira do caos insignificante, no interior do lixo interminável do pachorrento domingo.

Dormiu o resto daquela tarde decisiva.

Na cozinha a cheirar gordura rançosa, Tereza e os filhos cochichavam sobre os significados do rompante inusitado.

Ninguém ousou acordá-lo quando a tarde morreu. E Ascânio dormiu a noite toda, sem perceber Tereza a vigiá-lo. Ela, entre um cochilo e outro, também adormeceu profundamente, remoendo sonhos e tragédias, pesadelos e paraísos.

Quando o primeiro e férvido raio de sol afagou seu rosto de segunda-feira, Tereza acordou de sobressalto. Ao ver a poltrona vazia, despejou casa afora um grito medonho, eivado de aflição.

O clamor se juntou no mesmo instante a tantos outros, de outras tantas Terezas, trombando-se mutuamente, mas provocando o paradoxo da harmonia, no encontro conspiratório dos desejos coletivos.

Todos os Ascânios já estavam lá fora, reunidos num mutirão de pincéis e cal branca, traçando no chão uma longa fronteira.

Cá dentro não haveria mais passagens para profetas ou estafetas, para os arautos das mentiras, para as esperanças da desgraça, para as promessas do desdém, para os discursos do fingimento, para o choro da ignorância ou dos impostores.

A epidemia foi se espalhando incontrolável. O cerco de cal branca se alongou. Nunca o país viu tantos Ascânios e Terezas. Nunca um grito alçou vôos tão arrojados. Nunca se fez uma fronteira tão virtual e ao mesmo tempo tão inexpugnável.

O contágio foi avassalador. A baliza branca confinou palácios, assembléias, tribunais e seus palhaços. Nenhum deles jamais ousou atravessá-la, depois da proclamação da República de Ascânio.

Sobre o Autor

Airo Zamoner: Airo Zamoner nasceu em Joaçaba, Santa Catarina, criou-se no Paraná e vive em Curitiba. É atualmente cronista do jornal O ESTADO DO PARANÁ e outros periódicos nacionais. Suas crônicas são densas de conteúdo sócio-político, de crítica instigante e bem humorada. Divide sua atividade literária entre o romance juvenil, o conto e a crônica, tendo conquistado inúmeros prêmios e honrosas citações.

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