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O Penico e a Arte

por André Carlos Salzano Masini *
publicado em 30/01/2004.

Antes de virar as costas, Tininho lançou um último olhar para sua velha casa e para sua mãe, que chorava na soleira. Caminhou pela rua de chão batido, seguido por amigos que faziam seresta e que se despediram logo adiante.

Partiu de seu bairro, partiu de Belo Horizonte... partiu Brasil afora, levando apenas a mochila, o violão e o desejo de mergulhar no mundo e na vida... Era o ano de 1974, e ele acabara de completar 20 anos.

A estrada reserva surpresas e decepções para quem nela se aventura, e com Tininho não foi diferente. No início ele foi se arranjando, tocando na rua, conseguindo aqui e ali alguma comida e lugar para dormir. Quis porém o destino que ele acabasse numa cidadezinha entre Goiás e Bahia, lugar pobre, cercado por um areial sem fim, onde crescia um cerrado baixo e seco, que se estendia plano para todos os lados, até onde a vista alcançasse.

Ali vivia um poderoso coronel, temido em toda a região por seu péssimo gênio; de humor tão terrível, que não havia quem dele se aproximasse sem sentir amolecer as pernas. O homem detestava qualquer tipo de música; de banda militar até coro de igreja, para ele era tudo "porcaria"; e de todas as "porcarias" a pior eram os "vagabundos com violão debaixo do braço": "Eu inda amarro um cabra desses num pau de aroeira e dou-lhe com gato morto na cara até o gato miá...... quero ver se não toma jeito e larga de incomodar..."

O povo da cidade estava mais que avisado. Era só o coronel apontar no fim da rua que os rádios e vitrolas eram imediatamente desligados e todos se calavam...

Tininho chegou no ônibus do meio-dia, desceu inocente, como pinto saído do ovo. Deu uns passos incertos pela praça e acabou parando diante da igreja. Sentou-se no banco debaixo da mangueira, tirou a viola do saco e pôs-se a tocar, em plena luz do dia.

Uma agitação silenciosa percorreu a praça. Os olhos inquietos passavam do violeiro para o início da rua, de onde o coronel poderia surgir a qualquer momento. Em volta de Tininho formou-se um círculo invisível, onde ninguém entrava.

As horas foram passando, e a expectativa crescendo. Uns sentiam simpatia pelo moço e torciam para que o coronel não surgisse, outros mal podiam esperar pela cena... Mas o dia acabou, e o coronel não apareceu.

Longamente, Tininho tocou sozinho. Depois se aborreceu, levantou-se e tentou puxar conversa com as pessoas, mas foi ignorado. Seguiu perambulando pelas ruas, com fome e cansaço cada vez maiores, lamentando ter caído naquele fim de mundo. Por fim, sentou-se na calçada, sem fazer idéia de que estava bem debaixo da janela do coronel. Decidiu dormir ali mesmo e pegar o primeiro ônibus da manhã seguinte.

Horas depois, para se distrair, resolveu tocar uma musiquinha obscena: paródia de Luar do Sertão:

- Não há coisa melhor/ do que ca... no urinol/ a gente senta bem na beira do penico/ senta pobre, senta rico, deputado, senador,/ depois faz força, engrossa a veia do pescoço/ ca.. fino, ca.. grosso, ca.. até o sol se pôr.

Ao ouvir aquilo, as pessoas dentro da casa sentiram um frio na espinha e se encolheram aguardando a explosão de fúria do coronel... Pobre músico!

Mas então veio a surpresa...

Meses antes, o coronel havia se hospedado na casa de um político em Brasília; casa suntuosa, com os banheiros recobertos de espelhos. Lá, ao sentar-se para fazer as necessidades, o coronel assustara-se com o que vira no espelho. Tendo sido criado sob rígida disciplina moral, ele jamais havia presenciado uma pessoa praticando aquele ato tão humano. Mas ali, no espelho, ele vira o próprio rosto ficar roxo, as veias se dilatarem... Hipocondríaco, logo imaginara estar possuído de terrível e mortal doença... pressão intestinal arrebatadora, dejeção explosiva, ou algo ainda pior...

Ele saíra do banheiro pálido, desculpara-se e partira sem terminar o jantar. Voltara para sua cidadezinha e isolara-se em casa para esperar a morte. Continuava nessa situação até aquela noite em que Tininho aparecera...

Nessa noite, quando a porta do quarto do coronel se abriu, os empregados, apavorados, esperaram pelo pior. Lá fora, a música continuava. Mas no rosto do coronel, ao invés de fúria, havia um sorriso. Pela música, ele havia entendido que, quando um homem está fazendo aquilo, é normal as veias se engrossarem.

-- Mas que música excelente! Que beleza! Isso sim é arte!
Tininho foi convidado a entrar e recebido como um príncipe... E o povo da cidade está até hoje tentando entender o que aconteceu.

* Na versão impressa o artigo saiu com o título "O Coronel, o Penico e a Arte".



Sobre o Autor

André Carlos Salzano Masini: André C S Masini nasceu em São Paulo, em 1960. Aos 17 anos escreveu sua primeira história de ficção científica, "Os montes além do deserto", que existe até hoje em manuscrito. Cursou Geologia na USP, e formou-se em 1983.

Hoje tem dois livros publicados: a ficção científica "Humanos" e o livro de traduções e estudos “Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa”, além disso tem uma coluna semanal no Jornal "O Paraná", e é diretor de um centro cultural virtual, a www.casadacultura.org, que divulga seus trabalhos e tem milhares de assinantes em todo o Brasil.

contato: andre@casadacultura.org

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