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Só Luzia

por Ieda Estergilda de Abreu *
publicado em 22/01/2004.

Só Luzia

Horário de almoço na rua mais agitada do bairro japonês, bairro também de chineses, coreanos, butaneses, onde a vida paulistana parece transcorrer com menos pressa e mais cores. Numa esquina da Galvão Bueno, um grupo de japoneses conversa trocando sorrisos e reverências, deixando uma porção de mistério do Oriente naquele canto ocidental. No dia internacional da tolerância, um monge de olhar sereno dá voltas pela praça da Liberdade em postura de meditação. O som das flautas andinas ecoa pela praça e ruas próximas, se contrapondo ao formigamento humano.

Tomo coragem e me aproximo da mulher sentada no batente de uma escada que dá para uma academia de artes marciais, o semblante de total alheamento. Embora ocupando um ponto de sombra, o sol de quase verão faz brilhar intensamente seu rosto escuro.

Não é comum abordar desconhecidos, ainda mais para perguntar o nome, mas era exatamente o que eu queria saber daquela mulher. Já não a considerava uma estranha, cruzava com ela quase todo dia, subindo e descendo as ruas do bairro, sentada nos batentes ou dormindo debaixo de marquises. Fosse como fosse, parei decidida a entrar na sua órbita.

Quando fiz a pergunta, ela me fitou com olhos avermelhados, cuspiu para o lado e depois de acompanhar o trajeto da saliva, respondeu com a cabeça voltada na direção do vento.

_ Esqueci.

Talvez tivesse esquecido mesmo, mas como eu queria mais que puxar conversa, insisti.

_ Tenta lembrar, seu nome não é Luzia? Você tem cara de Luzia, sabia?
_ Luzia sabia não é meu nome não.
_ Luzia, só Luzia.
_ Só Luzia também não me chamo não.

Se ela estivesse brincando comigo seria bem mais fácil.
_ Então, como você se chama?
_ Não me chamo Luzia sabia nem só Luzia
_ Tudo bem, esquece.
_ Esqueci, repetiu dando outra cusparada, dessa vez quase me acertando o braço.
_ Você parece uma princesa com essas roupas.

Ela me olhou com olhos turvos e vislumbrei alguns dentes no meio da boca escura, sem saber se era um sorriso ou simples movimento da face. A negra alta à minha frente, os trapos cruzados nos ombros, nos quadris e nas pernas, parecia uma princesa africana, tinha porte de princesa. Já a encontrara de manhã cedo espreguiçando-se lenta em cima de tiras de papelão, tentando ajeitar os panos, limpando os olhos com saliva. Acompanhei por umas duas ou três quadras sua batalha para conseguir comida na porta de bares, ou por alguns goles. Quando era só isso que conseguia, se animava por instantes, erguia bem a cabeça e desfilava para ela mesma. Mais adiante ia se encostar em qualquer canto, as pernas abertas, o olhar desfocado, a cabeça mal se sustentando no tronco. Ou colocava os braços em volta dos joelhos, a cabeça entre as pernas e assim ficava, muda e tonta. Nada por dizer, nada por fazer. No final do dia, quando as lâmpadas vermelhas da Liberdade iam se acendendo e fazendo a diferença na cidade, ela ainda arrastava o manto roto pelas calçadas, os pés grossos de tanto chão. Mas não perdia o porte, por mais miserável e bêbada que estivesse, mais faminta e suja. Sua pele brilhava, havia luz naquela vida. Acho que foi por isso que adotei Luzia.

Sobre o Autor

Ieda Estergilda de Abreu: Escritora e jornalista cearense radicada em São Paulo. Tenho publicados: Mais um livro de poemas, Fortaleza, 1970; Grãos, Massao Ohno Editores, São Paulo, 1984; O jogo do ABC, infantil, Fund. Demócrito Rocha, Fortaleza, 2001. Edito o jornal O Escritor, da União Brasileira de Escritores (UBE) e faço parte da diretoria. Acaba de lançar "A Véspera do Grito". Email: diampel@globo.com

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