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Consciência de forma e de classe num romance visceralmente paulista

por Chico Lopes *
publicado em 02/11/2009.


Uma noção que parece arraigada nas fileiras da crítica literária, hoje em dia, causa a impressão contínua de que há duas correntes editoriais em atividade: uma em que os escritores cuidariam de enredos, personagens e histórias bem contadas e outra em que a preocupação seria acima de tudo com a linguagem, a invenção e a fragmentação narrativa sem preocupação com linearidade. Dentro deste raciocínio, a primeira daria em livros populares, candidatos a best-sellers superficiais e descartáveis ou então irremediavelmente anacrônicos com seu realismo inteligível, e a segunda desembocaria em livros lidos só pelo autor e seus no máximo cinco ou seis amigos de algum boteco em moda, com volumes destinados a formar pilhas fracassadas em garagens particulares desses escritores que, decididamente, jamais poderiam aspirar a ser conhecidos. Porque a qualidade que suporiam ter seria violentamente desmentida por resultados em livros de peito estufado, mas estruturalmente pífios, ou talvez bons, mas inatamente impopulares.

A divisão tem suas verdades, mas em certa medida é estanque - há muita gente procurando contar boas histórias sem abrir mão das liberdades e conquistas formais obtidas pela modernidade literária e há muitos livros ditos experimentais, ousados ou "transgressivos" que são simples e irremediavelmente chatos, paradoxalmente envelhecidos em sua diluição das vanguardas, destinados a "morrer na praia" menos por injustiça do mercado editorial que pela sua presunção e seu descuido metido a vanguardeiro - a julgar por eles e pelas declarações de seus autores, todos uns gênios injustiçados e ressentidos, o Mercado (assim, com maiúscula) é, decididamente, um vilão hediondo.

Por isso a situação no mundo literário parece tão controversa e tensa - há grupelhos e egos demais, patotas que exigem adesão ou condenam o resistente à morte e à invisibilidade de tal modo que escritores mais sérios e cuidadosos, com exigências mais profissionais, são vistos como vendidos ao tal difuso Mercado ou violentamente condenados por amadores displicentes que não amam senão a literatura que eles próprios fazem e acham de uma importância descomunal renegar todas as outras.

Tudo isso tem sido um terreno propício demais à clássica e óbvia "inversão dos valores" e prolonga o clima tenso que sempre se verificou na chamada "vida literária" brasileira, com gerações e escolas, pedantes e intuitivos se digladiando, rangendo dentes, bradando calúnias e clamando vinganças e cometendo notórias e cegas injustiças. Raramente conseguindo chegar a um patamar estável de profissionalismo (que dispensaria muitas polêmicas ardentes e fúteis), o escritor brasileiro simplesmente interessado em escrever bem parece totalmente perdido em meio a tantos tiroteios de gente que se improvisa literata prematuramente demais e quer justificar sua mediocridade e displicência na razão ou na histeria. Sair chamuscado é praticamente infalível.

Daí, surpreendo-me quando encontro a primeira obra de ficção de uma autora que, decididamente, parece não se importar muito com esses antagonismos e futilidades endêmicos. Ela é Ivone C. Benedetti e o livro se chama "Immaculada" (edição da Martins Fontes, 379 páginas).

O livro pode dar a impressão superficial de se filiar a um tipo mais tradicional de leitura com sua capa e aspecto sóbrio. Mas eu o peguei e não consegui largá-lo. Porque, acima de tudo, é um romance bem contado e tem esse mérito nada desprezível de ter uma história com começo, meio e fim que de modo algum é desinteressante ou "careta". É apenas uma excelente história. E seus personagens estão longe de qualquer maniqueísmo - mesmo seu quase monstruoso personagem principal, que ocupa mais espaço que a própria personagem-título, é um ser humano de quem de vez em quando sentimos compaixão. A escritura de Benedetti é sutil e não tipifica - sempre que se pensa que um dado personagem cairá no clichê, ele se prova vivo, contraditório e matizado e até mais compreensível, à luz do contexto histórico, do que se imaginaria. Por outro lado, em livros ditos inventivos e experimentais, sem enredo ou direção que não os caprichos de linguagem do "inventor", não raro encontramos personagens mais estereotipados que nos livros mais tradicionalmente armados como este. Os que em geral acusam os livros com enredo e personagens definidos de retrógrados não saberiam construir coisas assim, não têm o cuidado e a humildade da verdadeira arte literária.

* * *

Ivone C. Benedetti, que primeiro dedicou-se ao magistério e depois às traduções (de italiano e francês), constrói seu enredo com paciência e congruência. E, além de tudo, escreveu um romance visceralmente paulista, cuja história, cobrindo os fins dos anos 20, a revolução de 32, a tomada de poder por Getúlio (que descontenta facções poderosas da elite paulistana) e avançando sutilmente no tempo e no espaço, traz um panorama que mexe com quem, de uma geração mais recuada, informada e politizada, nasceu no interior ou na capital do estado. Além de tudo, há um vaivém sutil dos personagens entre campo e cidade, mostrando aquilo de que a gente vem suspeitando intuitivamente há muito tempo - que o coronel do campo, prepotente, autoritário, machista e racista ao cubo, continua vivo na alma de grande parte no empresário moderno que forma, junto com outros "jagunços envernizados", grupos influentes de pressão e lobbies junto aos políticos, das grandes cidades. Entre a injustiça e o atavismo, o passo é curto.

Francisco, advogado e fazendeiro, é bem isso. Sem nenhuma comparação com o "São Bernardo", de Graciliano Ramos, ele é o homem que "fez coisas ruins que deram lucro e coisas boas que deram prejuízo", o Paulo Honório dono de terras e triturador de almas prepotente e egoísta que não consegue enxergar um palmo além de seus interesses. Ademais, tem sua Madalena na mulher, Lucinha, o que resulta em episódios dramáticos e absorventes na primeira parte.

Só na segunda parte é que veremos surgir Immaculada e entenderemos a razão de seu nome ter valido para título do romance. Na primeira parte, a ambientação em fazendas paulistas dos anos 20 e 30 é muito correta, do ponto de vista sociológico e reconstituição histórica, Benedetti tem perícia nas descrições e a criação de uma atmosfera fica garantida por todos os cuidados bem visíveis de uma autora sem pressa. Mas, saltando para a cidade grande, ela não é menos habilidosa.

Dois personagens frutos do machismo, o velho Evaristo e seu filho também Evaristo, ilustram muito bem o que mencionei quanto à ausência de maniqueísmo e traços tipificados em Benedetti. São dois mulherengos, o filho de maneira mais debochada e óbvia que o pai - são os machões clássicos para quem as mulheres são uma distração e, caso independentes e infiéis, um senhor problema. Com eles, vamos vagar por uma região entre Botucatu e Ribeirão Preto, mergulhar no atavismo dos fazendeiros com suas "amigadas", sua arrogância de donos de consciências políticas e comerciantes de pequenas cidades num Brasil que muito lentamente deslocava seu eixo vital do campo para a cidade (e que até hoje não perdeu seu atavismo de atraso mental roceiro, sob muitos aspectos; o fantasma do Arcaico entre nós é muito vigoroso e isso torna o livro de Benedetti atual). O Evaristo filho se perde por puro sensualismo, lascívia, bebedeira, pusilanimidade e vadiagem irresponsável de filho de rico, mas não deixamos de compreendê-lo por isso - suas fraquezas são muito humanas. O Evaristo pai, até certa altura um vilão aparente, é mais simpático e vivo (o que resulta em sua atração sexual) que o personagem principal, seu filho Francisco, e assim Benedetti, habilidosamente, evita que o leitor se plante num terreno previsível. Tudo isso faz com que fiquemos presos à movimentação da narrativa, interessados o tempo todo.

Na segunda parte, veremos um movimento social e histórico definido, quando colonos italianos expulsos em decorrência de truculências e arbitrariedades dos fazendeiros do interior se fixam na capital e vão engrossar as fileiras da esquerda sindical e da oposição ao fascismo (se bem que não faltem os politicamente omissos ou direitistas) num mundo paulistano italianizado perfeitamente conhecido por todos nós que conhecemos primeiro, no interior, os emigrantes fixados nos cafezais paulistas, e depois, em São Paulo, os que provieram tanto das roças interioranas quanto da própria Itália com ambições mais citadinas pelo perfil industrial da metrópole, por assim dizer.

Não é surpreendente, no segundo caso, encontrar-se aí tipos que evocarão até o Matarazzo tão economicamente importante para a capital e variações. Francisco, numa ótima cena, se reencontra com um italiano conhecido de seu pai no campo (venerador de Mussolini) instalado como fornecedor de frios e iguarias e, não resistindo aos muitos queijos que ele lhe oferece numa longa conversa à noite, padecerá de uma intoxicação alimentar violenta que quase o matará de madrugada. Punido pela gula? Não apenas: a sutileza da escrita de Benedetti mostra que, afeito a tudo que é estrangeiro por achar mais refinado, assim como acha que só na capital há pessoas cultas o bastante para conversar com ele, o advogado, intoxicado por tanto produto importado, revela aí seu colonialismo grosseiro e primário. Na verdade, é um deslumbrado, um ingênuo diante daquele mundo "sofisticado", como é ingênua e pretensiosa culturalmente grande parte da classe dominante que ele frequenta.

Em lances de interesse político e econômico, a ainda garota Immaculada entrará como objeto de venda descarado, e será oferecida a Francisco, a esta altura viúvo da infortunada Lucinha, como esposa. Na verdade, ele está mais interessado é na sua mãe e quem lhe aponta a menina, ironicamente, é seu pai, com quem, aliás, num outro lance de decisiva ironia, a menina simpatiza muito mais. De equívoco em equívoco, de dominação em dominação, de homens realmente desejados a homens social e politicamente impostos a mulheres submissas, este é um livro em que o feminismo, militante ou não, encontrará muitos motivos para teses.

As mulheres estão escravizadas aos seus papéis domésticos decorativos e não podem dar um passo além daí e às vezes parecem autênticos zumbis teleguiados por patriarcas arbitrários - os adultérios e falhas que ficariam muito evidentes são encobertos hipocritamente por reclusões forçadas em conventos ou terminam em suicídios. Mulher como pessoa não existe, para esses homens - qualquer esboço de emancipação dá em tragédia (para elas) - classicamente, claro, eles têm as suas concubinas, vivem sua falocracia à vontade e uma delas, aliás, muito amada pelo Evaristo pai (e parece sinceramente amada), se prova de uma astúcia muito maior do que a das esposas oficiais. Uma outra, de classe baixa, italiana, Annunziata, que parece uma vilã tenebrosa, mostra uma tão completa consciência de classe diante dos desmandos da patroa, mãe de Immaculada, que sua manobra vitimizando Immaculada com ajuda de seu irmão, Paolo, sedutor italiano, não chega nem a parecer tão terrível. É, aliás, uma das grandes qualidades do romance a sua consciência de classe que, não forçando na ideologia, é dramaticamente utilizada e artisticamente muito coesa. Essa aguda consciência de classe faz com que o sentimentalismo untuoso típico de telenovela ou folhetim barato vá para o ralo, graças aos céus. Todo mundo parece consistente e lucidamente plantado em seus papéis sociais e econômicos e o mundo se divide entre empregados e patrões em posições hostis que correspondem à realidade.

Immaculada, na verdade, terá um papel aparentemente pequeno em toda a história, se comparado ao do advogado Francisco, seu marido. Aparentando uma passividade mórbida, ela será objeto de troca e não poderá amar quem verdadeiramente a atraiu como homem, Paolo, o irmão de Annunziata, senão de modo inocente e desajeitado, sendo premiada com uma revelação desalentadora mais à frente. Mas tampouco o "cafajeste" bonitão que Paolo parece ser é um personagem estereotipado e detestável. Ele tem uma centelha de consciência que malogra os planos da irmã. Immaculada, a despeito de sua rebeldia, é encaminhada para o casamento como para um matadouro e é tida como "sonsa" por Francisco, que a quer como ornamento social e instrumento de ascensão política e econômica, mas é assim, "sonsamente", que espalhará a sua subversão e seu veneno em atitudes que terão um peso decisivo na narrativa. O conceito implícito em seu nome, de pureza feminina ideal, é uma carga injusta e humanamente absurda que toda mulher, sob a tirania do patriarcalismo hipócrita, cristão-utilitário e mórbido do Brasil, bem conhece. Deixo isso, claro, para conhecimento dos leitores.

Este é um livro que recomendo a todos. Ivone está iniciando sua carreira de ficcionista muito bem, virá com um livro de contos provavelmente no próximo ano e elabora um segundo romance, sempre com as preocupações sócio-políticas que a orientam. Um romance digno de ser esperado por todos que conhecerem "Immaculada".

Sobre o Autor

Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.

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Francisco Carlos Lopes
Rua Guido Borim Filho, 450
CEP 37706 062 - Poços de Caldas - MG

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