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Trecho de Desvario, de David Grossmann

por David Grossman *
publicado em 12/08/2008.

Como ela agüenta isso?, pensa ele, todos esses rituais meticulosos que é obrigada a refazer, percorrendo nervosamente os quartos antes de sair, batendo as portas dos armários, abrindo e fechando gavetas, algo contrito e opaco toma conta de seu belo rosto nesses momentos, Deus a livre de esquecer algum detalhe, algum pente, livro, frasco de xampu - tudo poderia desmoronar. Ele senta à sua escrivaninha vazia com a cabeça apoiada entre as mãos, enquanto ela joga um aceno apressado da porta, e seu coração afunda, ela nem sequer chega perto para se despedir; hoje haverá algo especial lá, ela sai correndo para a rua, olhos baixos para evitar contato visual e alguma conversa supérflua. Como é que ela não desiste? De onde tira forças para passar por isso a cada dia de novo?

Em seguida, como que baixando a guarda, ele fecha os olhos e se apressa em acompanhá-la enquanto ela entra no carro, um minúsculo Polo verde-claro. Ele o comprou de surpresa para ela, que ficou horrorizada com a cor e reclamou que era muito extravagante. Mas ele queria que ela tivesse seu próprio carro, para se locomover livremente, para que não fiquemos brigando o tempo todo por causa do carro, disse. E quis que ela tivesse um carro muito verde. Na sua fantasia, era como se fosse um dispositivo eletrônico brilhante injetado na corrente sanguínea dela de modo a poder ser monitorado por uma câmera. Lentamente, ele vai apoiando a cabeça no encosto do assento, e ela dirige, a face tensa, próxima demais do pára-brisa. Ela vai levar cerca de oito a nove minutos para chegar, e é preciso acrescentar ainda um eventual atraso inesperado (um engarrafamento, algum farol quebrado, o homem que está à sua espera lá no apartamento não achar as chaves e demorar para abrir a porta), e lá se vão mais quatro ou cinco minutos preciosos. Elisheva, ele diz em voz alta, com vagar, pronunciando cada sílaba.

E diz mais uma vez, para aquele homem.

O homem que poupa cada instante necessário para se despir, que não perde tempo pois cada segundo é valioso, e, enquanto ela conduz o veículo por entre as ruelas estreitas que ligam uma casa à outra, ele já vai tirando a roupa, no quarto ou talvez perto da porta, desce as calças largas de veludo marrom, tira a folgada camisa de cor indefinida, que um dia também foi marrom, ou cor de laranja, ou talvez até mesmo rosa, ele é bem capaz de usar uma camisa rosa, que importa o que vão pensar?, é isso que é bonito nele, reflete Shaul, que ele não se importa com nada, nem com o que vão pensar nem com o que vão dizer, essa é a força dele, sua saudável integridade interior; aparentemente é isso que tanto a atrai.

Ela vai ao encontro dele, dispara ao encontro dele, olhos fixos no caminho, boca tensionada. Daí a pouco essa boca será beijada e há de relaxar, engolir, arder, os lábios deslizarão sobre aqueles outros lábios, de início apenas superficialmente, tocando sem tocar, então virá uma língua e desenhará seu contorno dando voltas e mais voltas, e os lábios tentarão não sorrir, e logo se ouvirá um murmúrio de prazer, não se mexa enquanto eu desenho, e de dentro dela sairá um grunhido de concordância, e aí os lábios dele se fixarão nos dela e, com toda a sua agressividade ríspida, masculina, vão sugá-los; depois se afastarão por um instante, deixando passar um suspiro quente. Por fim, os lábios vão se encontrar de novo, agora com a solenidade de um desejo realmente intenso, as línguas se entrelaçando como se fossem criaturas com vida própria, e os olhos dela se abrirão por um breve momento com um suspiro suave, os globos oculares se revirando um pouco para em seguida sumir. Sob as pálpebras semicerradas se revela uma brancura vazia, assustadora.

Ela é uma mulher grande, Elisheva, generosa também de corpo. É até mesmo um pouco grande para um carro tão pequeno, e talvez por isso tenha achado ruim que ele tenha lhe comprado um Polo, e talvez também por isso ele tenha escolhido justamente o Polo, quem pode saber, é só agora que isso lhe ocorre, por causa da sensação de que ela está praticamente rompendo a concha a caminho de lá, quase explodindo ao encontro dele enquanto se esforça para se concentrar no caminho, deleitando- se com a suposição de que o homem à sua espera esteja neste instante pensando exatamente a mesma coisa, dessa forma ganhamos mais alguns momentos juntos, ela lhe dissera uma vez.

Ela avança, o carro verde circula dentro da rede de artérias que se estende daqui até ele, e, quando Shaul emerge da onda de dor, ela já está lá, com ele, Shaul pode vê-lo ligeiramente, uma mancha de calor grande e larga, braços sólidos, e o rápido gesto dela pondo a mão sobre seu ombro e se curvando para tirar os sapatos sem desafivelá-los, os dedos ansiosos e desejosos percorrendo o corpo dele nu, as roupas já espalhadas a seus pés, e as roupas dela caindo sobre as dele. Shaul fecha os olhos e absorve o golpe representado pela mistura de tecidos, e dói tanto que ele é obrigado a desviar o olhar das roupas para o homem, pois neste momento o homem em si é menos doloroso que as roupas jogadas umas sobre as outras, o homem que se antecipou e se despiu para ganhar alguns segundos preciosos, e esperou por ela ansiosamente, andando pela casa nu, ardendo de excitação, estimulando-se com pensamentos na mulher grande, bonita e determinada, que corre para se encontrar com ele no seu carrinho verde e sexy - foi a palavra usada pelo rapaz moreno que vendeu o carro a Shaul, e foi essa palavra que convenceu Shaul a comprá-lo -, e nu ele zanza rápido pelo apartamento, mesmo sendo um homem bastante lento por natureza. Shaul consegue de fato ver cada gesto seu, um por um, e seu jeito de andar e falar um tanto pesado, autoritário; mas, agora, ele está todo inquieto, pois os passos dela já sobem correndo as escadas, e pronto, eis que afinal ela chega mesmo, e ele já vai lhe abrir a porta, escolhendo bem a posição como a receberá, pois sua nudez, como dizer, talvez não agrade tanto a Elisheva, especialmente em pé, especialmente à luz do dia, que decerto não favorece as numerosas dobras que pontilham sua barriga e seu peito, nem os grandes e vigorosos músculos peitorais, nem os abundantes pêlos grisalhos; mas, hoje, ao ouvir os passos correndo escada acima, ele só abre um pouco a porta, e corre para a cama no quarto imerso na penumbra, e se deita numa posição provocativa, de bruços, um dos joelhos ligeiramente dobrado, como se tivesse dado um rápido e gostoso cochilo logo depois de ter lhe aberto a porta, dormitando com a tranqüilidade de um homem saudável sem problemas de digestão ou consciência, de modo que aos olhos dela, quando ela entra, revelam-se primeiro suas costas de aparência forte - e fortes de fato -, em seguida as nádegas e pernas que, nessa posição, têm um aspecto quase jovem; ela pára por um momento, dá uma olhada, sorri consigo mesma, então vai até a cama e, com calculada deli- cadeza, passa um dedo ao longo das costas dele, do pescoço até as nádegas, depois se curva e passa a língua vagarosamente, cuidadosamente, de um lado ao outro do pescoço, só a ponta da língua, só um ligeiro sinal da umidade de sua boca, e ele estremece e, com um grunhido, enfia a cabeça no travesseiro, como que decapitado.

Sobre o Autor

David Grossman: O israelense David Grossman nasceu em 1954, em Jerusalém, onde estudou filosofia e teatro antes de começar uma longa carreira como repórter da Rádio Israel. Jornalista respeitado em seu país e no exterior por sua cobertura do conflito entre judeus e palestinos (O vento amarelo e Dormindo na corda-bamba), Grossman é ainda o autor premiado e mundialmente traduzido de vários livros infanto-juvenis e de sete romances que vão da crônica da Jerusalém contemporânea em Alguém para correr comigo às sutilezas amorosas e formais de Ver: Amor.

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