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Encontrando Forrester

por Viegas Fernandes da Costa *
publicado em 05/01/2008.

"(...) sou excelente em Literatura Inglesa, mas ninguém me chama de Shakespeare. Sou bom poeta também, mas você nunca me disse que era Cruz e Sousa. Por que, por que não posso ser Shakespeare, Cruz e Sousa, ou outro escritor qualquer? Por que um rapaz negro tem que ser somente Pelé?"
(José Endoença Martins, A Cor Errada de Shakespeare)(1).

Muito já se escreveu sobre o filme Encontrando Forrester (2000), do diretor estadunidense Gus Van Sant; uma história de amizade entre um escritor recluso e um jovem e talentoso negro do Bronx que busca se tornar também um escritor de qualidade. As possibilidades de debate que este filme apresenta são muitas, mas queremos aqui analisá-lo a partir das relações interétnicas explicitadas em seu enredo. Encontrando Forrester permite que se discuta a complexidade das identidades que caminham para aquilo que o escritor martinicano Édouard Glissant chamou de crioulização, ou seja, a concepção de uma identidade rizomática, "da identidade não mais como raiz única, mas como raiz indo ao encontro de outras raízes"(2). É esta perspectiva que nos interessa aqui: compreender como os personagens, inicialmente enraizados em suas concepções identitárias, constroem-se para o diálogo e para uma nova posição, sem, no entanto, abandonarem aquilo que originalmente constituiu seu eu. Como se torna possível a troca entre os diferentes na construção do novo, do crioulo.

O enredo do filme está basicamente estruturado sobre três personagens. O primeiro é Jamal Wallace, um negro de dezesseis anos que mora no Bronx e que se dedica a jogar Basquete. Aluno de escola pública, Jamal recebe uma bolsa para estudar em um colégio freqüentado pelas elites, em Manhattan. O segundo é William Forrester, escritor consagrado pela crítica e pelo público após publicar seu primeiro e único livro. Desiludido com a incompreensão da sua obra, Forrester desenvolve uma fobia social, isola-se em seu apartamento, também no Bronx, onde divide espaço com os livros que lê. O terceiro é Crawford, professor de literatura na escola de Manhattan, e escritor frustrado. Destes três personagens, o único negro é Jamal; Forrester e Crawford são brancos.

José Endoença Martins, ao estudar a construção de identidades afro-descendentes na literatura (3), trabalha com três metáforas para explicitar três diferentes posturas identitárias: Ariel - que se constitui no desejo de se aproximar da cultura do outro, renegando a sua própria; Calibã - caracterizada pelo nacionalismo, a defesa da sua pureza identitária e a negação do outro; e Exu - que deseja eliminar as barreiras culturais promovendo a solidariedade e alteridade sem deixar de reconhecer sua identidade primeira (a crioulização, segundo Glissant). Tentaremos analisar aqui a posição dos três personagens principais a partir destas metáforas.

Jamal Wallace, como já dissemos, é negro, pobre e mora no subúrbio de Nova York. Seus amigos são também negros e pobres, identificados com a cultura do Bronx e empregam o tempo ocioso jogando basquete de rua, esporte em que se destaca Jamal. No filme a bola de basquete parece imantada às mãos de Jamal, e serve como elo entre este e sua cultura de origem. No entanto, o personagem é profundo conhecedor de literatura e língua inglesa, e deseja também ser um escritor de qualidade. Sua postura identitária é permanentemente conflituosa: da mesma forma como se reconhece um negro pobre do Bronx, necessita se fazer aceito junto aos brancos. Jamal deseja ser reconhecido como um igual entre os brancos. Esta postura fica clara, por exemplo, quando o proprietário de um automóvel BMW, ao ver Jamal, resolve travar as portas do seu automóvel. Jamal então demonstra que conhece a história daquele automóvel, sabe o poder simbólico que a marca BMW carrega, e termina dizendo que se trata apenas de um carro. Esta atitude, pensada isoladamente, poderia ser interpretada como uma postura calibanista, algo do tipo: conheço tua história, tua língua, teus valores, e uso deles para desprezar o que vem de ti. Não é o caso.

Em outros momentos do filme o personagem recorre novamente à afirmação de si através da cultura do outro: desafia seu professor de literatura, Crawford, reconhecendo citações de autores ocidentais e corrigindo-o na gramática inglesa. Porém, o momento mais emblemático desta postura ocorre quando Jamal deverá defender o colégio de elite onde estuda na partida final do campeonato de basquete. Aqui justificaremos a epígrafe que abre este texto. Jamal é convidado a estudar neste colégio após ser aprovado em uma prova de conhecimentos e, fundamentalmente, por ser um exímio jogador de basquete. Nesta escola de Manhattan, interessa apenas que Jamal jogue basquete, que consiga vencer o campeonato. Este é o acordo: sua bolsa de estudos e seu ingresso em uma nova categoria social dar-se-á mediante sua participação no time do colégio. Já Jamal não deseja apenas isto. O reconhecimento enquanto bom jogador já acontece entre seus pares, no Bronx. O reconhecimento que Jamal busca é outro, o mesmo reconhecimento por que apela o personagem da epígrafe acima quando este questiona por que tem que ser Pelé, por que não pode ser Shakespeare ou Cruz e Sousa. É neste sentido que, na final do campeonato, na presença dos seus familiares e amigos, diante de um estádio cheio e mediante a promessa de continuar estudando em Manhattan se conseguir a vitória para o seu colégio, Jamal propositalmente erra as cestas que dariam a vitória ao seu time. É o risco e o preço que corre para ser reconhecido não mais como um "Pelé", mas como um "Shakespeare", um "Cruz e Sousa". Assim, Jamal assume uma postura arielista, negando-se a si mesmo, justamente porque busca algo que considera mais importante, que vai além do reconhecimento enquanto jogador de basquete. Jamal é, assim, o protagonista do drama e faz aquilo que ninguém espera dele.

No outro extremo temos o professor de literatura Crawford, um escritor frustrado e reconhecido pelos seus alunos como autoritário e vingativo. Crawford assumirá para si a função de preservar uma suposta pureza cultural, representada no filme pela literatura. Considerando as metáforas apresentadas por José Endoença Martins, Crawford representará o Calibã. Ele não consegue aceitar a idéia de que um jovem negro do Brox, matriculado em sua escola para jogar basquete, possa se destacar na arte da literatura, e sua missão será provar ao próprio Jamal seu lugar na sociedade: um jogador de basquete nascido e criado no Bronx. Neste contexto, a identidade é um espaço estanque, de fronteiras claramente estabelecidas e onde o diálogo interétnico só se dá a partir de uma relação "colonizador-colonizado"(4). Cabe a Crawford saber o que é culturalmente válido ou não, cabe a Jamal aceitar-se enquanto colonizado e agradecer o privilégio da colonização. Crawford assume no filme o papel do antagonista, aquele que procura impedir o protagonista de alcançar seus objetivos.

Como terceiro personagem temos o escritor William Forrester. Forrester publicou apenas um romance, no entanto, é um autor consagrado pelo público e pela crítica. Apesar de todo o seu sucesso, resolve se recolher a uma vida solitária em seu apartamento, no alto de um velho prédio, também no Bronx. Seu único contato com o mundo exterior é através do seu secretário, e da janela do seu apartamento, Forrester tem a visão da quadra onde Jamal e seus amigos jogam basquete. O filme retrata o escritor através de um clássico clichê: o artista anti-social e quase inatingível. É este o caso de William Forrester: o escritor amargurado que despreza seus leitores e escreve para suprir uma necessidade pessoal, alcoólatra, sociofóbico e que mora no alto de uma torre. A discussão que o filme propõe a respeito da literatura e da figura do escritor é vasta, e não há espaço para discutirmos aqui. Cabe-nos sim observar que a despeito de toda a sua introspecção, Forrester tem a função de facilitar o diálogo entre Jamal e a cultura do "outro", representada, neste caso, pela literatura e pela aceitação plena no colégio em Manhattan. É o escritor que convida Jamal para entrar em seu apartamento, é ele que propõe o diálogo através da leitura crítica dos textos do adolescente que almeja escrever bem; sua função é mediar dois mundos, tornando possível o trânsito de Jamal por estes, ou seja, cabe a William Forrester o papel de Exu, conforme a metáfora de José Endoença Martins.

Ao contribuir com a resolução do impasse entre Ariel e Calibã, entre protagonista e antagonista, Forrester também se transforma, também cede em suas posições, também recicla sua subjetividade. Tanto Jamal quanto Forrester, por aceitarem o diálogo, posicionam-se em áreas fronteiriças. No caso destes dois personagens, a identidade pode ser compreendida enquanto fronteira, o que não acontece com o professor Crawford; Calibã que é, está enraizado em seus preconceitos e, assim, este personagem é o único que não se desenvolve, terminando ultrapassado e desmoralizado. Assim, o que o filme Encontrando Forrester propõe é justamente a importância do diálogo interétnico, e a compreensão de que identidades são constituídas na mobilidade, e móveis devem permanecer.

Proposta interessante para um tempo que assiste aos discursos maniqueístas pós onze de setembro e aos fantasmas da xenofobia, sempre presentes.

Notas de fim:
(1) In. Martins, José Endoença. A cor errada de Shakespeare. Blumenau: Odorizzi, 2006, p. 271.
(2) Glissant, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade, Juiz de Fora:UFJF, 2005, p. 27.
(3) Cf. Martins, José Endoença. Negritice: interculturalidades e identidades na literatura afro-descendente. In. Costa, Hilton & Silva, Paulo Vinícius Baptista (orgs). Notas de História e cultura afro-brasileiras. Ponta Grossa: UEPG/ UFPR, 2007, pp. 253-269.
(4) Cf. Memmi, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo do colonizador. Tradução por Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. São Paulo: Paz e Terra, 1967.

Sobre o Autor

Viegas Fernandes da Costa: Viegas Fernandes da Costa nasceu no município de Blumenau em 21 de fevereiro de 1977. Formado em História e professor de Humanidades no Colégio Metropolitano de Indaial, começou a escrever muito cedo. Poeta, contista, cronista e ensaísta, possui inúmeros trabalhos publicados na imprensa nacional e em antologias, detendo inclusive alguns prêmios literários. Viegas mantém também a coluna “Crônica da Semana”, distribuída para milhares de endereços eletrônicos em mais de uma dezena de países.

Site oficial = http://www.viegasdacosta.hpg.ig.com.br/

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